domingo, 27 de julho de 2025

27- Um caso incrível dum casal premiado com o euromilhões.

 

Estavam as coisas neste ponto, já era fim de tarde, Jacinto na terra a fazer obras, Francisca na praia a projetar a ida a Vale dos Ovos e, em Vale dos Ovos, a dupla Jápintas e Pisca-pisca, ressabiada do passeio à Senhora da Asneira, à Pedra de Ouro, de tarde bem regada, especulava sobre a árvore das patacas que alimentaria os fundos da carteira do nosso casal.

- Essas árvores não existem e o dinheiro não nasce, tem de vir de algum lado. Mas de onde? – perguntavam-se enquanto bebiam o sempre adiado último do dia.

- Uma vez fui com ele a tal lado, um dia vi o gajo com um tipo de óculos escuros, havia dias em que não os via senão à noite, uma noite vi um carro que não era daqui à porta deles, faziam de pobres só para disfarçar!...

- Que só fumava umas brocas!... Que só fumava umas brocas! Fumavam ele e ela! Fumavam e vendiam! O que é que eles iam fazer tantas vezes ao Entroncamento e a Fátima? Que eu saiba não negociavam em travessas velhas nem em terços em segunda mão!

A fonte do dinheiro só podia ser uma, o negócio da droga!

Aliás, esta é a explicação a que se chega sempre quando um vizinho ou conhecido começa a passear-se num automóvel novo – no caso um papa reformas – e arranjam uma nova morada. Efabularam tanto as evidências, tomaram de tal modo como certa a conclusão, que deixaram de ver qualquer saída que não fosse denunciar às autoridades competentes o que, rápida e levianamente, passou de simples desconfiança a informação fundamentada e segura.

A polícia recebeu-os e ouvi-os com ávida atenção, assim que percebeu que havia ali caso susceptível de dar gosto ao dedo de servidor do estado. Casa com piscina na primeira linha junto ao mar é indício de peixe graúdo a dar à costa. 

A investigação prosseguiu o seu caminho, baseada nos factos e nos dados fornecidos pelos dois consumidores de drogas legais, a saber, vinho, cerveja e aguardente. Voltaram ao Vale, mantendo cúmplice segredo do ato de velhaca bufaria que haviam levado a cabo. Esperariam uns dias para ver o resultado e, só depois e em função dele, se gabariam que partira deles a iniciativa contra o crime e a bem da segurança das pessoas de bem deste país.

Andou o processo de esquadra em esquadra, de agente em agente, a casa da praia sobre vigilância, de Jacinto nem sinais, Franscisca entrava e saía, o papa-reformas e os táxis eram difíceis de seguir sem se fazerem notar, mas era claro que havia ali fortes suspeitas de ilicitudes, pelo que, um dia a campainha tocou já noite avançada, Francisca foi detida com a roupa que tinha vestida e a malinha, o telemóvel confiscado, entrou, incrédula, no carro da polícia da Marinha Grande.

Foi tratada sem dó nem piedade, como é tolerável e, segundo consta, hábito, nestes locais onde se tratam assuntos com os fora-da-lei. Quando falou do euromilhões, provocou estridentes gargalhadas na sala do interrogatório. Passou a noite na cela e, no dia seguinte, perante a insistência da sua justificação para os sinais exteriores de riqueza e a fragilidade dos elementos de prova, circunscritos ao relato dos dois denunciantes, a inspeção cedeu e viu-se confrontada com a situação inédita de ter de entrar em contacto com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Francisca foi libertada entre mil pedidos de desculpas do chefe da polícia, tendo exigido como reparação dos incómodos causados, sigilo absoluto sobre a origem da sua riqueza e que a levassem a casa de imediato.

Como chegou a casa por volta do meio-dia, optou por ir almoçar no restaurante do costume e, enquanto gozava o prazer do sossego duma refeição a sós consigo, pôs-se a congeminar nos acontecimentos das suas últimas horas. Ele há cada uma! Certo, que para lá da incompetência das autoridades, haveria alguém pouco inteligente que foi picar os simplórios dos polícias para atuarem, alguém que lhes desejava mal, não interessa quem, mas esse alguém, só poderia ser de Vale dos Ovos. Acomodou o enrolar e desenrolar dos pensamentos ao decorrer da refeição e já aguardava a conta quando uma luz se acendeu na sua mente:

- Pela boca morre o peixe, essa gente vai comer do veneno que inventou, não é tarde nem é cedo!

Estava dada a partida para um novo álibi que justificaria a riqueza, aliás modesta, se considerarmos a parte que chegara ao conhecimento dos conterrâneos: uma casa na praia, muita gente tem, viver sem trabalhar não falta quem.

Com este episódio e com esta decisão havia já motivos e motivações de sobra para ligar ao mais ou menos ex-marido e assim fez. Custou a convencê-lo que era verdade que tinha sido presa e quando este acreditou, em vez de ser solidário ou lhe dar consolo ao menos com um “deixa lá”, desatou a rir que nem um desalmado.

Jacinto voltou ao sério quando teve de concordar com a necessidade duma última e derradeira mentira, que ela mesma já estava a tecer e que tornaria pública na terra onde deles se fala, na ida que, nos termos já antes entre ambos combinados, teria de fazer por razões várias e vários fins. Quanto mais não fosse, por pura diversão de rica que era. O mote era este:

- Estás preso por tráfico de droga!

Daí a origem do dinheiro, muito dele posto a salvo das manápulas dos tribunais em bom tempo, ela que o gozava agora, ele que, cumpridos três anos, voltaria para lhe fazer companhia no gozo.

- Engulam! Aceitem! Desta vez, o crime compensou!... E compensou bem!... Pronto! Foi isto que aconteceu!... Nunca tive pai!... Chega? Estão contentes?

- Já estou para tudo! Mente para lá o que quiseres! Antes dares-me como preso do que como morto! Pelo menos se alguém me vir por aí não morre de medo! Eu não faço conta de lá voltar tão depressa e tu, se a coisa voltar a dar para o torto, desenrasca-te que já provaste que tens arte para isso! Eu por aqui estou bem, graças a Deus. Sempre que quiseres cá voltar, a porta estará aberta e a casa será tua!

Ah! E deixa-me dizer só mais uma coisa: a minha mãe achou-te uma rica mulher e o meu irmão está sempre a perguntar por ti.

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