Estavam as coisas
neste ponto, já era fim de tarde, Jacinto na terra a fazer obras, Francisca na praia a projetar a ida a Vale dos Ovos e, em Vale dos Ovos, a dupla Jápintas
e Pisca-pisca, ressabiada do passeio à Senhora da Asneira, à Pedra de Ouro, de
tarde bem regada, especulava sobre a árvore das patacas que alimentaria os
fundos da carteira do nosso casal.
- Essas árvores não
existem e o dinheiro não nasce, tem de vir de algum lado. Mas de onde? –
perguntavam-se enquanto bebiam o sempre adiado último do dia.
- Uma vez fui com
ele a tal lado, um dia vi o gajo com um tipo de óculos escuros, havia dias em
que não os via senão à noite, uma noite vi um carro que não era daqui à porta
deles, faziam de pobres só para disfarçar!...
- Que só fumava
umas brocas!... Que só fumava umas brocas! Fumavam ele e ela! Fumavam e
vendiam! O que é que eles iam fazer tantas vezes ao Entroncamento e a Fátima?
Que eu saiba não negociavam em travessas velhas nem em terços em segunda mão!
A fonte do dinheiro
só podia ser uma, o negócio da droga!
Aliás, esta é a
explicação a que se chega sempre quando um vizinho ou conhecido começa a
passear-se num automóvel novo – no caso um papa reformas – e arranjam uma nova
morada. Efabularam tanto as evidências, tomaram de tal modo como certa a
conclusão, que deixaram de ver qualquer saída que não fosse denunciar às
autoridades competentes o que, rápida e levianamente, passou de simples desconfiança
a informação fundamentada e segura.
A polícia
recebeu-os e ouvi-os com ávida atenção, assim que percebeu que havia ali caso susceptível
de dar gosto ao dedo de servidor do estado. Casa com piscina na primeira linha
junto ao mar é indício de peixe graúdo a dar à costa.
A investigação
prosseguiu o seu caminho, baseada nos factos e nos dados fornecidos pelos dois consumidores
de drogas legais, a saber, vinho, cerveja e aguardente. Voltaram ao Vale,
mantendo cúmplice segredo do ato de velhaca bufaria que haviam levado a cabo.
Esperariam uns dias para ver o resultado e, só depois e em função dele, se
gabariam que partira deles a iniciativa contra o crime e a bem da segurança das
pessoas de bem deste país.
Andou o processo de
esquadra em esquadra, de agente em agente, a casa da praia sobre vigilância, de
Jacinto nem sinais, Franscisca entrava e saía, o papa-reformas e os táxis eram
difíceis de seguir sem se fazerem notar, mas era claro que havia ali fortes
suspeitas de ilicitudes, pelo que, um dia a campainha tocou já noite avançada,
Francisca foi detida com a roupa que tinha vestida e a malinha, o telemóvel
confiscado, entrou, incrédula, no carro da polícia da Marinha Grande.
Foi tratada sem dó
nem piedade, como é tolerável e, segundo consta, hábito, nestes locais onde se
tratam assuntos com os fora-da-lei. Quando falou do euromilhões, provocou
estridentes gargalhadas na sala do interrogatório. Passou a noite na cela e, no
dia seguinte, perante a insistência da sua justificação para os sinais
exteriores de riqueza e a fragilidade dos elementos de prova, circunscritos ao
relato dos dois denunciantes, a inspeção cedeu e viu-se confrontada com a
situação inédita de ter de entrar em contacto com a Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa.
Francisca foi
libertada entre mil pedidos de desculpas do chefe da polícia, tendo exigido
como reparação dos incómodos causados, sigilo absoluto sobre a origem da sua
riqueza e que a levassem a casa de imediato.
Como chegou a casa
por volta do meio-dia, optou por ir almoçar no restaurante do costume e,
enquanto gozava o prazer do sossego duma refeição a sós consigo, pôs-se a congeminar
nos acontecimentos das suas últimas horas. Ele há cada uma! Certo, que para lá
da incompetência das autoridades, haveria alguém pouco inteligente que foi
picar os simplórios dos polícias para atuarem, alguém que lhes desejava mal,
não interessa quem, mas esse alguém, só poderia ser de Vale dos Ovos. Acomodou o
enrolar e desenrolar dos pensamentos ao decorrer da refeição e já aguardava a
conta quando uma luz se acendeu na sua mente:
- Pela boca morre o
peixe, essa gente vai comer do veneno que inventou, não é tarde nem é cedo!
Estava dada a
partida para um novo álibi que justificaria a riqueza, aliás modesta, se
considerarmos a parte que chegara ao conhecimento dos conterrâneos: uma casa na
praia, muita gente tem, viver sem trabalhar não falta quem.
Com este episódio e
com esta decisão havia já motivos e motivações de sobra para ligar ao mais ou
menos ex-marido e assim fez. Custou a convencê-lo que era verdade que tinha
sido presa e quando este acreditou, em vez de ser solidário ou lhe dar consolo
ao menos com um “deixa lá”, desatou a rir que nem um desalmado.
Jacinto voltou ao
sério quando teve de concordar com a necessidade duma última e derradeira
mentira, que ela mesma já estava a tecer e que tornaria pública na terra onde
deles se fala, na ida que, nos termos já antes entre ambos combinados, teria de
fazer por razões várias e vários fins. Quanto mais não fosse, por pura diversão
de rica que era. O mote era este:
- Estás preso por
tráfico de droga!
Daí a origem do
dinheiro, muito dele posto a salvo das manápulas dos tribunais em bom tempo,
ela que o gozava agora, ele que, cumpridos três anos, voltaria para lhe fazer
companhia no gozo.
- Engulam! Aceitem!
Desta vez, o crime compensou!... E compensou bem!... Pronto! Foi isto que
aconteceu!... Nunca tive pai!... Chega? Estão contentes?
- Já estou para
tudo! Mente para lá o que quiseres! Antes dares-me como preso do que como morto!
Pelo menos se alguém me vir por aí não morre de medo! Eu não faço conta de lá
voltar tão depressa e tu, se a coisa voltar a dar para o torto, desenrasca-te
que já provaste que tens arte para isso! Eu por aqui estou bem, graças a Deus.
Sempre que quiseres cá voltar, a porta estará aberta e a casa será tua!
Ah! E deixa-me
dizer só mais uma coisa: a minha mãe achou-te uma rica mulher e o meu irmão
está sempre a perguntar por ti.
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