quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Sei ler

Tínhamos terminado uma instrução básica dura e o jantar do pelotão, num restaurante da vila que vivia à sombra do quartel, justificava-se. O tenente, o homem mais frio que conheci em toda a minha vida, e o sargento foram também.
Os corpos militarmente preparados e a juventude máscula comeram bebida e carne. No fim os comandantes e um ou outro instruendo mais palavroso tentaram discursar. Sentia-se o alívio da etapa cumprida mas não existiam condições psíquicas para haver festa.
O Almeida, que me conhecia de outras andanças, picou-me para a declamação. Não fazia sentido subir a cadeira perante tal plateia e pôr-me para ali no trato da palavra e, além disso, não estava para aí virado. Seria importante que tomassem conhecimento das nossas letras para nos respeitarem e, para a ocasião, o Sei Ler poderia servir-nos o intento. Mas, se nem eu próprio achava sentido nessas frases soltas, que sentido faria expor ali a minha adolescência prolongada?
Nestas trocas de "encosta e empurra" com o Almeida, ele, que me levava de ascendente, encheu os copos e rematou:
- Pois é precisamente aí que reside o seu valor neste momento, se essa espécie de poesia não tem mensagem nem se compreende, eles vão respeitar-nos e considerar-nos por sentirem que não atingem em entendimento a nossa craveira intelectual!!! Ah!Ah!Ah!
- Que não seja por isso, que se declare aberta a festa!
A brincadeira, de ética questionável, saiu-me cara, pois carreguei até ao fim do serviço militar a alcunha d"o poeta" - se sabia ler era poeta!

SEI LER
Há quem só veja o Leopardo.
Um só, dos homens da Noite.
E o bacalhau?! – Puta de vida!
Suor de rum que a visão sentiu.
Queria dizer-te adeus indo contigo.
Às vezes sem ti estou só...
Às vezes sem ti sou livre...
Adorava contar-te certas histórias que encontrei.
Antigamente excitei-me nas alturas.
Agora tenho-me escondido nas profundidades
e constantemente tenho rebentado cigarros de responsabilidade.
- Gaita! Vai subir outra vez o tabaco e o pão!
- SEI LER!

11 comentários:

samuel disse...

Mas quem diabo é que se lembra de "saber ler" numa altura dessas?

Abraço

Zé Povinho disse...

Que importa que ninguém entenda se eu sei ler que o tabaco vai aumentar e o pão também? A minha craveira intelectual pode ser mal interpretada, mas o bolso não mente. Não serei poeta, pois a palavra não é o meu forte, mas lá que o dinheiro se esfuma mais depressa, isso ninguém o pode negar.
Talvez os mais dotados na carteira o não sintam, e até se riam do que digo, mas que dirão os outros que ainda podem menos do que eu?
Lá de cima nem um gemido, nem uma palavra, estão todos bem. Pudera!
Abraço do Zé

Jorge P. Guedes disse...

Se cultura enchesse barriga...

Um abraço.

Jorge G.

joshua disse...

Eu só vejo Hamburgers e não sou Wimpy nenhum!

Sou Poeta! E estou fodido!

PALAVROSSAVRVS REX

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra
Há muitas leituras. Há as leituras dos políticos que mostram sempre que a culpa foi do anterior mas que, com eles, depois do aperto do cinto vem a luz ao fundo do túnel; e há a leitura dos que sentem na pele não só o que os olhos lêem e os ouvidos escutam, mas o que a barriga transmite.
Um abraço letrado

A. João Soares disse...

Tenhamos respeito pelos políticos! São deuses do Olimpo, lá longe nas nuvens, onde não chega o odor dos esfomeados e não se sente a subida dos preços, e onde apenas há conhecimento da subida dos salários reais da «elite» governativa e dos seus subsídios. Cada vez mais despesas com mais conselheiros de deputados, já de si desnecessariamente numerosos, com os assessores, com as substituições de carros, com as benesses dos tachistas deas empresas públicas que tão caras ficam aos contribuintes.
E assim se criou um défice que serve de pretexto para nos obrigarem a apertar os cintos até desaparecer a barriga.
Eles lá sabem o que dizem quando se chamam os piores nomes e adjectivos.
Um abraço

carlos filipe disse...

Pata Negra, Pata Negra
venho aqui me redimir
pela quebra de presença
que tenho feito sentir.

Anda a minha vida apertada
já não sei o que fazer,
é tão longa a caminhada
que também já não sei ler.

Leio que está tudo melhor
educação, saúde e vida,
e as prestações sociais
e menos pobreza sentida.

Porra,serei que estou a mais
e não consigo perceber
as tais imagens reais
que me querem fazer crer?

Cada vez encontro mais
desemprego e amargura,
crianças a passar fome
velhos em velhice dura.

Cada vez mais desiguais
mais ricos os que já são
e pobres cada vez mais
por desemprego e escravidão.

Eu não sei ler, Pata Negra,
tens tu que me ensinar,
então ninguém é culpado
do crime de nos roubar?

Da Moderna, à Casa Pia,
passando na Independente
e seguindo sempre frente
o dourado apito chia.

Mas nada disso é provado
parece tudo inocente
e o único culpado
é Zé Povinho inocente.

Pata Negra, Pata Negra
ensina-me tu a ler
porque ando meio perdido
receando me perder.

quintarantino disse...

A cada um a sua leitura e, se calhar, nos tempos que correm, felizes dos que já não sabem ler!

Compadre Alentejano disse...

Aqui, quem sabia ler era poeta, em Angola, o preto que sabia ler era tratado por branco pelos outros pretos.
Gostei do post, parabéns.
m abraço
Compadre Alentejano

Eternamente disse...

Majestade
Saber ler é mais que saber ler. É mesmo saber ler.
E como eu sei ler não quero aquilo que leio.
Um abraço sem leitura

José Lopes disse...

Bem aventurados os pobres de espírito...
Pelo menos esses não se apercebem das causas dos males de que todos sofremos. Nós! Porque há dos outros que estão no bem bom, à nossa custa.
Cumps