CGM (Curso Geral de Milicianos), noite de instrução, anos de oitenta, talvez duzentos “recos” de poucas semanas, o exercício determinava a divisão em secções, metade de um lado e metade do outro. Quem conseguisse capturar sobre a ameaça de armas - sem munições, é evidente! - uma secção inimiga, seria recompensado com qualquer coisa que já não me lembro.
Alentejo, montado, terra arada, a lua companheira com escassa claridade. Uma parte da companhia já ia nos vinte e muitos com curso superior quase ou já tirado e levava a tropa o menos a sério que podia, a outra, acabadinha de sair do liceu, tentava dedicadamente todos os louvores - talvez no fim do SMO (Serviço Militar Obrigatório) lhe desse para meter o “chico”.
O sobreiro tinha sido derramado há pouco e a rama, espalhada no chão, servia a camuflagem perfeita. Goulão, com a sapiência de tantos anos de Coimbra, convenceu:
- Mandem foder a tropa! Abancamos aqui a descansar e, quando ouvirmos o tiro de sinal do fim da “cowboiada”, aparecemos no local da reunião! Não apanhamos ninguém mas aqui também ninguém nos apanha!
Todos de acordo, deitámo-nos na ramagem a descansar, a fumar uns cigarros e a gozar com a tropa quando o Almeida aponta para além de cinquenta metros de distância:
- Olha ali uma secção inimiga! Não custa nada! Vamos capturá-los!
Goulão e outros – É pá! Deixa-os lá ir! Estão a incomodar-te?! Queres sair daqui com alguma medalha?
O Almeida não se conformou com a passividade dos camaradas e avançou determinado:
- Se vocês não aproveitam esta borla de atacar, eu vou sozinho!
E lá partiu, encosta abaixo, com o peso dos seus 90 quilos, sem perturbar minimamente a deliciosa sossega duma dura recruta.
Do escuro uma lanterna: o tenente Trindade focou um a um os nossos rostos, pronunciou foco a foco cada apelido, acrescentando no final de cada nome um “bem instalado!...” No momento que coube a cada instruendo, um silêncio interior pensou em si por todos:
- Estamos fodidos! Isto pode dar um fim-de-semana sem ir a casa!
Salvou-nos o Almeida. Ouve-se o seu vulto soldado a aproximar-se, veem-se os seus passos ofegantes a disparar, a lanterna atinge-lhe o rosto: uma expressão de guerra a sério em tempo de guerra a brincar!
- Então senhor Almeida o que é que se passa?!
- Meu tenente! Venho de atacar o inimigo!
- E a sua arma?
- Deixei-a aqui com os meus camaradas!
- E o inimigo?
- Meu tenente! Capturei-os mas eles não quiseram vir!
A secção riu contidamente, o Almeida riu respeitosamente, o tenente Trindade, o homem mais frio e cruel com quem se cruzou a minha vida, perdoou! Incrível! O tenente Trindade não riu, não falou, não castigou, deve ter dito apenas:
Alentejo, montado, terra arada, a lua companheira com escassa claridade. Uma parte da companhia já ia nos vinte e muitos com curso superior quase ou já tirado e levava a tropa o menos a sério que podia, a outra, acabadinha de sair do liceu, tentava dedicadamente todos os louvores - talvez no fim do SMO (Serviço Militar Obrigatório) lhe desse para meter o “chico”.
O sobreiro tinha sido derramado há pouco e a rama, espalhada no chão, servia a camuflagem perfeita. Goulão, com a sapiência de tantos anos de Coimbra, convenceu:
- Mandem foder a tropa! Abancamos aqui a descansar e, quando ouvirmos o tiro de sinal do fim da “cowboiada”, aparecemos no local da reunião! Não apanhamos ninguém mas aqui também ninguém nos apanha!
Todos de acordo, deitámo-nos na ramagem a descansar, a fumar uns cigarros e a gozar com a tropa quando o Almeida aponta para além de cinquenta metros de distância:
- Olha ali uma secção inimiga! Não custa nada! Vamos capturá-los!
Goulão e outros – É pá! Deixa-os lá ir! Estão a incomodar-te?! Queres sair daqui com alguma medalha?
O Almeida não se conformou com a passividade dos camaradas e avançou determinado:
- Se vocês não aproveitam esta borla de atacar, eu vou sozinho!
E lá partiu, encosta abaixo, com o peso dos seus 90 quilos, sem perturbar minimamente a deliciosa sossega duma dura recruta.
Do escuro uma lanterna: o tenente Trindade focou um a um os nossos rostos, pronunciou foco a foco cada apelido, acrescentando no final de cada nome um “bem instalado!...” No momento que coube a cada instruendo, um silêncio interior pensou em si por todos:
- Estamos fodidos! Isto pode dar um fim-de-semana sem ir a casa!
Salvou-nos o Almeida. Ouve-se o seu vulto soldado a aproximar-se, veem-se os seus passos ofegantes a disparar, a lanterna atinge-lhe o rosto: uma expressão de guerra a sério em tempo de guerra a brincar!
- Então senhor Almeida o que é que se passa?!
- Meu tenente! Venho de atacar o inimigo!
- E a sua arma?
- Deixei-a aqui com os meus camaradas!
- E o inimigo?
- Meu tenente! Capturei-os mas eles não quiseram vir!
A secção riu contidamente, o Almeida riu respeitosamente, o tenente Trindade, o homem mais frio e cruel com quem se cruzou a minha vida, perdoou! Incrível! O tenente Trindade não riu, não falou, não castigou, deve ter dito apenas:
-Venham em paz, o exercício vai terminar.
19 comentários:
Essa de que os prisioneiros «não quiseram vir» foi, de certo, inspirada na "guerra" do Raul Solnado. É um monólogo impar que fez rir até às lágrimas muita gente. Os mais atentos perceberam que o Solnado, ao ridicularizar a sua "guerra" apelava à consciência dos portugueses para perceberem a estupidez das guerras que travávamos em África. Mas o texto parecia tão inocente que o famoso lápis azul da censura não achou maneira para actuar.
Tenentes Trindade conheci muitos nos mais de três anos e meio de tropa. Muitos deles faziam um grande esforço para serem temidos. No fundo eram bons tipos que só não queriam que o pessoal descobrisse que tinham bom coração. Mas também havia os trindades, que eram uns merdas, uns fracassados, que fora dos quartéis eram desprezados por todos. Esses eram os piores! Covardemente abusavam dos sinais que ostentavam nos ombros para lixar (quase linchar) os subalternos, enquanto lambiam as botas aos seus superiores.
Estou convencido que a maioria dos visitantes deste espaço que o Rei, com a sua Real bondade, nos disponibiliza conhecem vários tipos de trindades para além dos que refiro. Cheguem-se à frente e partilhem com os restantes. É um desafio!
Alberto Cardoso
Viva Majestade,
O texto tem a sua marca de produção : é excelente, único.
Não andei nessa guerra Majestade.
Também não conheci esse Trindade.
Mas tenho ouvido contar algumas histórias curiosas e engraçadas envolvendo a hierarquia militar.
Adoro ouvi-las, como adorei lê-lo sobre o Trindade.
Acha que ele me recebia no aquartelamento ?
Um beijinho muito amigo
Maria
Bela história da "tropa fandanga". Já lá vão esses tempos, mas os que correm não são nada melhores. Agora, a tropa é toda profissionalizada, pagam bem para irem aos cenários de guerra impor políticas imperialistas.
Um abraço anarquista
Pata Negra
Adorei esta história se bem que não consiga enquadrar-me num cenário bélico. Primeiro porque nunca fiz tropa e depois porque odeio a guerra, seja ela qual for e em nome do que for.
Um abraço não bélico
Outros tempos e outras realidades, com instrutores também frios e cruéis, mas que tinham calo no cú como o macaco, bem lixado estava alguém como eu que os enganou com adiamentos, porque a tropa era algo que não desejava fazer. Passar despercebido era a tática, mas eles sempre topavam comigo, embirravam se quiserem, e toca a encher, toca a dar mais umas voltinhas com tudo às costas, vai de rastejar, e como castigo final uma voltinha até à tropa de elite, os comandos, onde tudo se repetiu, ainda que com mais requinte e em tom mais ameaçador.
Os malditos instrutores nunca foram comigo para o mato, eles sabiam bem que não era bom para a sua saúde, mas ainda hoje recordo com asco as suas caras.
Não tive muita sorte, perdi alguns anos com aquela porcaria, e saudades só de alguns como eu, que daquilo não puderam fugir.
Cumps
Essa guerra era no Alentejo profundo, para os lados de Beja, não era?
Uma boa história, e contada por um especialista como tu, ainda melhor
Parabéns.
Um abraço
Compadre Alentejano
Magestade
Tive a grande sorte de puramente por razões de calendário, não ser obrigado a conviver com "trindades". Sorte ajudada por algum granel que introduzi no curso normal da minha futura carreira militar. Primeiro porque não coloquei as patas na inspecção, depois porque apareci com o ar mais inocente e distraído a fazer a inspecção um ano mais tarde "foi distracção" disse "não, não estava no estrangeiro. Apenas não reparei na data...". Engoliram. Logo a seguir deu-se aquele "estremecimento" conhecido por 25 de Abril e os novos superiores foram entendendo que eu fazia mais falta a cantar voluntária e entusiasticamente nas acções, tantas delas promovidas pelos próprios militares, do que fardado de uma parvoíce qualquer e foram adiando a minha incorporação... até que passei à reserva.
Não faço ideia de quantos litros tem esta reserva, mas "rais ma parta" se não fiz já milhares de quilómetros com ela!
E é assim a estória da minha vida militar.
Abraço
Magnífico! Coisas por que muitos de nós passámos para não esquecer.
PALAVROSSAVRVS REX
Majestade
Até me deixou com vontade de ser militar mas aos 40 já é difícil fazer essa opção.
Bato-lhe a pála.
ainda bem que essa tropa foi de sorna...
Na minha floresta organizamo-nos democraticamente.
Abraço democrático
Obrigada pela visita*
AMigo Pata Negra,
Eu, uma analfabeta, (hummm), em vida militar, e como não há mais nenhum petisco, olha, vou-me à vida, mas deixo-te um abraço.
PATA NEGRA
ÉS CÁ DOS MEUS.
VENHA UM ABRAÇO
OÒ, militaremos!
A SEIVA e EU, SER IMPERFEITO.
Queria agradecer a simpatia e a solidariedade do teu último comentário. E, para além disso, o facto de teres destacado, aqui no teu sítio tão cívica e politicamente empenhado, o meu espaço tão umbiguista. É uma honra.
Na parada reinava um silêncio sepulcral. Um dos recrutas não se contém e solta com inusitada sonoridade um indiscreto gás. Ele ficou vermelho, metade do pelotão riu-se. O capitão, pior do que cobras, foi claro na sentença:
- Quem deu o peido faça 100 flexões;
- Quem se rio faça 200;
- Quem não se riu faça... 300, por falta de sentido de humor.
Obrigado pela gargalhada
Pata Negra
Ainda estamos na tropa?
Olha amigo Pata Negra eu ando à procura da democracia e, por isso, pus um texto no Silêncio Culpado. Se souberes onde a encontro.....
Abraço
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