quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Quarto 21

(Para perceber o que está para aqui a acontecer tem de correr os quartos precedentes)

Na esquadra apenas estavam mais dois polícias e, apesar de ignorantes em galões, percebemos rapidamente qual deles era o chefe. Sabíamos que a casa era bem conhecida entre eles, não só pelas rondas mas também pelas repetidas queixas da vizinhança, nada que não se tivesse sempre resolvido com umas chamadas de atenção. A calma e a maturidade com que Dona Graça respondia ao interrogatório, o menino bem comportado que eu, sem dificuldade, fazia aparentar, prometiam a resolução da intimidação policial. O “eu sou um pobre estudante que não estava habituado a beber” tocou, visivelmente, o tom militarizado do inquiridor. O pior é que o vestido de Verão do Virgolino convidava à graça e à graçola e não tardou que os polícias começassem a manifestar expressões de não acharem grande graça ao matulão. E, ao fim de umas trocas de gestos e palavras, passou-se toda a gente e o meu amigo acabou dentro da cela. Quando reconheceu o cenário, que lhe era tão familiar, ficou incontrolável. O tom da minha amizade e o coração de dona Graça acabaram por acalmar a demónio que se apoderara de Virgolino. Conformados os detentores e o detido, Virgolino teria de passar a noite na choça. Eu permaneceria junto dos agentes enquanto dona Graça fosse a casa buscar roupas decentes para o namorado e uns documentos.
Regressou passada meia hora. O castigado já estava calmo – não fossem os chuis aperceberem-se que estava numa situação de liberdade condicional.
- Façam favor de se apresentarem ambos, aqui, às oito da manhã. Se tudo correr como esperamos, libertaremos então o vosso amigo.
Fomos os dois abraçados rua além, divertidos com o acontecimento, temperando-o com uns comentários e gracejos, satisfeitos pelo encaminhamento do caso e dispostos a um desfecho em grande para aquela noite.
Chegados a casa, os convidados já haviam zorpilado, Tânia e Carlitos tinham a porta do quarto fechada e Gina, a quem a situação tinha tocado mais por ser mais nova, dormia na segunda cama do meu quarto.
- Quando vim cá a casa, acalmei-a e aconselhei-a a dormir no teu quarto. Esta sala está um caos, espero que não te importes! Amanhã arrumamos os despojos da festa!... Não me consigo esquecer do Virgolino! Só me apetece escrever-lhe uma carta.
Subimos a escada e entrámos ambos no quarto grande. Deu-me à mão a caneta e o bloco e começou a ditar:
Lininho, esta cama ainda cheira ao suor desta tarde. Ainda fazem ricochete, entre as paredes, os sons que juntámos…agora estás aí, enjaulado, qual pássaro feroz, qual toiro manso, a ouvir o ressonar dos teus vigilantes... faz de conta que és um gelado que eu pus no congelador… não se pode estar sempre a comer doces… agora apetece-me mais o bifinho rijo… sei que também gostas de assar o bifinho rijo mas não gostas de o comer…ainda bem, assim a nossa vida é muito mais harmoniosa…
Até amanhã meu Olá!”
A carta estendeu-se por duas ou três folhas e seria a prenda da libertação da manhã seguinte. O ditado foi interrompido a cada frase, por perguntas e risos, por festinhas e escravunços. Direi mais, desta vez o ditado foi tão vivido que não foi ditado, foi diálogo, foi risos, foi paixão, foi amor, foi poesia, foi vida, de tal forma que quando escrevia “Até amanhã meu Olá” dei pelo bifinho já tenro.
Traição?! Não! Nós pensámos permanentemente em Virgolino! Nós partilhámos com Virgolino! Nós dedicámos tudo o que escrevemos e fizemos ao Virgolino! Alguém ousará chamar traição à dignidade com que tratámos o Virgolino?!
Ah! Já sei! Dirão: mas ele não sabe! E por que haveria de saber? O melhor bem, muitas vezes, é aquele que se faz em segredo!...
Foi por Virgolino que, no dia seguinte, não fui às aulas. Às oito da manhã, com olhos de noite e carne bem, ou mal, passada, lá estávamos a recolher o nosso amigo. Dona Graça estendeu-lhe a carta mas ele não lhe deu importância e enfiou-a num bolso de trás das calças de ganga; a caminho de casa, às nossas perguntas dava respostas com uma ou duas palavras.
Entrámos na sala, tudo corria como o previsto, toda a gente dormia, era provável que desse para ocultar às meninas e ao Carlitos que o padrasto tinha passado a noite dentro. Dona Graça pôs-se a arrumar tudo e mais alguma coisa e nós, os homens, ficámos a petiscar uns restos e a abrir mais umas garrafas de cerveja. Valeu a ocasião para ouvir mais uns episódios da vida e dos sentimentos do cadastrado.
(Para a semana ainda haverá quarto)

20 comentários:

Anónimo disse...

É, é, mais dia menos dia há alguém que lê este blogue e dá com a língua nos dentes e eu ver como é que te entendes com o Virgolino.

Põe-te a fancos, amigo, não abuses da sorte...

Camolas disse...

Que sabor dôce têm os segredos.
Secamos por dentro, se não arriscarmos com segredos.

Compadre Alentejano disse...

Oh, compadre Pata Negra, então isso faz-se a um amigo? Ainda não casou e já é veado!...
Venham mais quartos...está a aquecer...
Um abraço
Compadre Alentejano

Anónimo disse...

Que neste caso já não são segredos...mas sim confissões do passado...ainda bem presente na memória do Pata negra. Do que tenho lido só lamento um rapazinho estudante bem educadito não fugir de tal situação??? Mãe filhas tudo farinha do mesmo saco.Tou pra ver como vai acabar a história hehehehe.
Um abraço de bife tenro rs
Luis

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra

Esse "sacrifício" pelo Virgolino chegou quase a comover-me.

Abraço

joshua disse...

O forno da Graça cozinha pão integral e assa tripa à tripa forra.

Abraço lambuzado

Tiago R Cardoso disse...

muito bom, diga-se que o ditado da carta foi interessante.

José Lopes disse...

Não sei se o Virgolino iria ficar sensibilizado com essa partilha de sentimentos pela sua pessoa, mas isso também não vem ao caso. Gostei da lição de culinária...
Cumps

antonio ganhão disse...

Acho que não fica mal aos estudantes fazerem ditados... olha hoje com o SMS, era só uma rapidinha!

Zé Povinho disse...

Olhos que não vêem, coração que não sente.
Se já tivesse sido utilizado, o título Ligações Perigosas ficava a calhar.
Abraço do Zé

Anónimo disse...

Que grande lição de solidariedade para com o Virgolino! Fiquei comovido, porcos destes já não existem.

Saudações do Marreta.

P.S.: No outro dia, por acaso, conheci um Virgolino acabadinho de sair da prisa. Segundo o mesmo me confidenciou, tinha apanhado 15 anos por ter morto a namorada à paulada e ter sodomizado um estudante que andava amantizado com a namorada. Deve ser apenas uma coincidência...

Anónimo disse...

Pata Negra tem cuidado. O Marreta já te leu a sina.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra

Se o Virgolino te atacar manda-o pintar muros na autarquia de Viseu. Ouvi dizer que esse é um dos maiores crimes que alguém pode fazer. Dá direito a responder em tribunal e a pagar indemnização. Ou é só para o PCP?

Abraço

joshua disse...

Não compreendo, mas estou em pulgas pelo 22.

Abraço abrasivo

aDesenhar disse...

ainda ando perdido nos quartos
:-)

abraço

Zorze disse...

Também eu ando a recuperar quartos.

Às tantas, o Virgolino até pode ficar agradecido por andar a jogar de onze na cabeça.

Abraço,
Zorze

Anónimo disse...

Não estarei muito longe da verdade... suspeito que vais publicar um dia os teus quartos construindo uma casa - o livro. Se acontecer compro. Mais do que uma aparente brincadeira gosto da imaginação, do encadeamento das ideias e, sobretudo, da fluidez da escrita...

um abraço

Savonarola disse...

Caro Pata Negra,

Gostei deste "quarto", até porque nada tem de asfixiante, é, até, mais libertador do que tantos quartos asfixiantes em que temos que dormir... Pelo menos, para esquecer o dia que vivemos e cairmos no verdadeiro esquecimento.
Algo de que o Virgolino bem devia estar a precisar, segundo a história. A bófia é que, essa sim, pode ser muito asfixiante para todos os Virgolinos que podemos ter dentro de nós, para os verdadeiros Virgolinos, dos quais reza esta história, para o Virgolino em que a vida, ou a nossa falta dela, nos podemos transformar, quem sabe?
Parabéns pelo "Quarto"!

Um abraço anarquista

j. manuel cordeiro disse...

Muita tinta tem essa caneta ;)

JFrade disse...

É UM DOS ENSINAMENTOS DE JESUS: DAR COM A DIREITA SEM QUE A ESQUERDA VEJA. FALO DAS MÃOS, CLARO.
MAS ESSA D. GRAÇA ERA MULHER DE MUITO ALIMENTO. INSACIÁVEL!