terça-feira, 22 de dezembro de 2009

2- Continua sem título

Chegavam numa ou duas carrinhas de guarda lamas a bater, punham as cornetas a tocar o “obládi obládá”, abriam dois buracos na terra batida, espetavam dois paus na vertical, ligavam ambos na ponta por uma corda esticada e abancavam arraiais. Era uma família e meia das margens dum circo maior e faziam os números de atravessar a corda em equilíbrio, do equilíbrio em três rolos de madeira, do bota fogo pela boca, do atira facas para a mulher no disco a rodar, do pomba na manga, dum cão com um macaco e, claro, dos palhaços.
Mas a novidade deste ano que a aldeia, que se reuniu por dois serões com moedas no bolso e palmas para dar, mais apreciou foi a da menina que já veio artista da barriga da mãe. A Teresinha, magrinha, de biquini com brilhantes, dobrava-se e desdobrava-se em cima de uma mesa, entrelaçava os membros, andava com as mãos como se fossem pés, desfazia-se num corpo disforme sem, no entanto, perder a forma graciosa de um obra das mãos da Natureza.
Não sei de que dimensão do fantástico poderia vir a ideia de fazer um número de circo com grilos. A menina nomeou-me parceiro: haveríamos de conseguir pôr vários grilos a grigar em sequência de modo a conseguir alguma melodia. Enfim, éramos crianças!
Dois dias de treinos e havia sempre o grilo de uma nota que morria. Valeu-nos a brincadeira pela amizade que encetámos e o rótulo que nos colaram os adultos, de sermos namorados, sem que a inocência nos desse para percebermos porquê.
Os saltimbancos não recolhiam apenas as moedas que lhes caíam nos chapéus, a vida familiar da aldeia fazia-os da família e, nos dias em que por ali conviviam, não lhes faltavam couves, tomates, batatas e até, uns nacos de toucinho.
Dessa proximidade, que o meu pai tanto cultivava com o patriarca saltimbanco, num fim de tarde de taberna, teria surgido a ideia peregrina de eu ir com a “malta do trapézio” ao Sítio. Seria a próxima paragem dos nómadas; seria a oportunidade do Mar, que nunca me tinha visto, me poder ver; seria uma maneira de me fazer crescer; daria sempre jeito, ainda que pouco destro, para dar assistência a um número; poderia dar um palhaço e, quem sabe, se o número dos grilos não poderia ser mais do que um sonho de crianças e pudesse vir a unir o futuro do par tão engraçado.

Não sei como o assunto caiu na mesa a céu aberto e iluminada com o pitromax mas lá em casa foi de toda a gente ficar de boca aberta:
- Ó homem, isso foi tempo de taberna a mais!?
- Eles da Nazaré vêm para Leiria e logo o devolvem na carreira do Arlindo!
- E já perguntaste ao menino se ele quer ir?!
Não fui! A minha mãe não era mulher de me deixar ir em aventuras! Além disso: e se eu fizesse chichi na cama!?


Este filme é para ouvir durante a leitura. Esta história começou a semana passada e para a semana, se tiver real disposição, escreverei outro capítulo.

7 comentários:

antonio ganhão disse...

Falhaste a tropa, que também era uma forma de deixar a casa com uma trupe de saltimbancos...

Enviei-te um e-mail e um convite... não obtive resposta.

salvoconduto disse...

Nã, nã, tu tiveste foi cagufa. Tu sem a Teresinha não te aguentavas. Vai daí convenceste a tua mãe, já que o teu pai era mais difícil.

Olha, sabes que mais? Atira-te às rabanadas e ainda vais a tempo de enviar um postal de boas-festas à Teresinha!

Jorge P. Guedes disse...

Muito giro este conto! Escreves bem, pá, do fundo do "saco"!

Excelente interpretação do garoto para uma cantiga imortal da minha adolescência.

Para ti,
Obladi oblada life goes on bra
Lala how the life goes on

Um abraço.

Camolas disse...

- Palavra bonita "nómada".
Famílias (de artistas) que deambulam por esse mundo, fontes de inspiração para a coragem que necessitamos nesta vida de escravos abananados.

Marreta disse...

Ai então eram crianças!
Humm, com gri(e)los, biquinis, brilhantes, tomates e toucinhos, isto não me cheira nada bem, não não! Isto ainda vai acabar no Quarto de Coimbra.

Saudações do Marreta.

André D'Abô disse...

aguardemos o título, então, ainda que ele me pareça absolutamente desnecessário. tenho gostado muito desta história e aguardarei os próximos capítulos. espero que para a semana uma brisa boa da memórias das coisas inventadas lhe traga o próximo capítulo.
um abraço.

Milu disse...

Quem é que nunca se sentiu maravilhado com as artes circenses?
Primeiro porque apresentam corpos magros e delineados, que nos parecem ainda mais perfeitos devido às vestes profusamente abrilhantadas por milhares de lantejoulas. Segundo, porque nos maravilham com a extrema agilidade com a qual parecem ser especialmente dotados. Não é de admirar, portanto, que o pai tanto se tenha empolgado com a ideia de iniciar o seu varão nestas artes do espectáculo. Esta é também uma forma de amor por um filho, porque para um filho deseja-se sempre o melhor... o sublime, por assim dizer!
Lembro-me de o meu pai, em conversas de taberna, inspirado pelos vapores de uns poucos copos de três, costumava trazer os filhos à baila e vá de lhes gabar o jeito para os estudos, que os filhos eram inteligentes, mais isto e mais aquilo. Pois bem, numa dessas ocasiões, em que o meu pai de cuspo nos cantos da boca tanto se vangloriava das faculdades dos filhos, calhou estar próxima a data do meu exame da quarta classe. Todos aguardavam com expectativa o meu desempenho, miúda ladina, de resposta pronta na ponta da língua. Pois vistos, dei um grande desgosto ao meu pai, pois apenas consegui um suficiente, nunca percebi porquê, já que naqueles tempos sabíamos tudo o que os nossos livros continham, detrás para a frente, da frente para trás, de alto a baixo e de baixo ao alto. Sei apenas que com isto matei um sonho do meu pai. Nunca mais se vangloriou dos filhos e isso ainda hoje me dói.

Desejo-lhe a continuação de Boas Festas e que continue a escrever estas memórias bonitas e tão ricas de um tempo que também já foi meu!