segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Sete Pés Dezasseis


À saída de Caldas deixou de ver as vieiras que indicam o Caminho e andou perdido até ao meio-dia, altura em que teve um encontro ensombrado de espiritualidade. O cenário foi o mosteiro de Santa Maria de Carracedo, um átrio de terra batida coberto de erva daninha, um trilho largo para a porta principal fechada testemunhando a frequência de fiéis e Pé Descalço sentado num muro de pedras, cuidando os pés físicos enquanto Pé de Meia matutava na direcção do Caminho. Em direcção aos Pés andou um vulto padre, velho de andar e de batina ruça. Chegado a poucos pés, parou e, permanecendo parado e em silêncio, fixou o olhar no olhar de Sete Pés. Às “boas tardes”, às expressões faciais de simpatias e às questões da direcção do Caminho certo, respondeu nada. Os Pés indagaram entre si para saírem do aperto do momento: é uma alucinação derivada do cansaço, é uma visão, é uma aparição, fugimos, pede-lhe um copo, dá-lhe a esmola e o velho tem mal de Alzheimer.

A cara branca, fria e congelada inclinou-se levemente para permitir o movimento trôpego da mão até à algibeira da batina e, quando a retirou, o braço apontado ficou a um escasso braço da face das sete caras pálidas do alvo Sete Pés. Na extremidade do braço, uma mão branca, de rugas mimadas, semiaberta e trémula falava pelos dedos:
- Achei isto, é teu?!
No primeiro instante pareceu um terço de rezar mas, concentrando o olhar, foi reconhecida de imediato a pulseira de missangas de Marie France.

Impulsivamente, reconhecendo a propriedade, Pé de Meia agarrou receoso o pechisbeque das mãos do pobre clérigo com palavras e ginástica de agradecimento sem qualquer sinal de retribuo.
O padre, sem largar palavra, virou costas partindo por entre as folhagens para as traseiras do templo assombrado. Pé de Meia esfregou o colar nas mãos, confuso, rejeitando a crença que o encontro tinha sido um sinal do Alto. De pés na terra, o facto de se tratar de um objecto de Marie era a prova de que tinha reencontrado o Caminho. Nas fachadas ou nas imediações do monumento haveria de estar cravada uma vieira. E estava.

Dali para a frente o Caminho faz-se por uma meia encosta coberta de arvoredo, que oculta o rio Valga lá ao fundo. Sabe-se do rio porque se ouve a sua voz, também ele a caminho duma foz onde outro rio o há-de levar ao oceano que lhe chamará um figo.

Pé Descalço não deixava de sentir em cada encalço, em cada folha ou cavaco que pisava, em cada cheiro ou regato que experimentava que também os sentidos de Marie recolheram as mesmas sensações e ouviram o mesmo rio.
Sacou do bolso a pulseira de missangas de Marie e passou os dedos por todas as bolinhas, uma a uma, rendendo a cada  uma avé-Marie. Terminado o rosário pensou nela: andou!
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Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra

8 comentários:

antonio ganhão disse...

Um belo momento. Esta epifania de Marie teve o seu lado místico e de encantamento.

samuel disse...

Muito bonito, este capítulo!

Abraço.

Zé Povinho disse...

A outra face, mais sensível de todos os Pés.
Abraço do Zé

mfm disse...

Misticismo, Sensibilidade e Inspiração. Gostei.

MARIA disse...

Que bonito, Majestade !!!
Muito, muito bonito.
Mas como se expressa maravilhosamente pela escrita este REI ...
Belíssimo texto. Acho que até a própria respiração do herói se adivinha, tão bela e tão perfeita é a forma como descreve o que ele sentiu.
E ela, daria por falta das missangas?
Teria "esquecido" de propósito?
Eu estou sempre a perder brincos e colares, mas desses, dificilmente me lembraria.
Gostei muito.
Fico de olho na continuação.

(um momento : vou só reler o que escrevi para não apanhar sustos )

Pronto. Um beijinho amigo para si
Majestade.

Maria

José Lopes disse...

Continua o bate Pé, agora sem a companhia que deixou a sua marca. Aguardemos.
Cumps

opolidor disse...

O dos "Peses" anda alucinado com a Marie.Logo que ela esteja a jeito afinfa-lhe outra vez.

abraço

Cristina Torrão disse...

Gostei do comentário do "opolidor" :)

Ao acabar de ler o episódio, pensei: o rapaz está perdidamente apaixonado, espero que encontre a Marie outra vez.

E que lhe afinfe, sim, também...