segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sete Pés Dezoito

Só ao fim de duas horas se conseguiu entrar no albergue, tomar banho e fazer descanso.
A última etapa da Via Lunar começou numa manhã de intenso nevoeiro. Pelo meio do percurso viria a chuva. Pé de Atleta discursou:
- Para a prova do Caminho ser completa, tem de haver molha! Uma peregrinação sem chuva não tem comunicação com o Céu, é um simples passeio ou uma prova de atletismo! Diz-se que Santiago de Compostela é o bacio da Espanha! Aqui temos o desafio!

Caminhar debaixo da capa impermeável, sob a chuva, foi duro mas, concordantes com a opinião de Pé de Atleta, o facto foi aceite por todos os pares como necessário ao cumprimento da peregrinação. Água Pé, apoiado pelo Pé Chato, apresentou a sua proposta alternativa recorrente de paragem no próximo estabelecimento.
- É pá, isto é só uma mijadela ciumenta do S.Pedro! S.Tiago quer que a malta ajude o comércio galego, paremos na próxima tasca até que a chuva pare!
E repetiu o seu ditado preferido:
- Com pão e vinho se faz o Caminho!

Mas não, Santiago estava já demasiado próximo para poder deter os pés mais ansiosos. Já não era só o chegar e abraçar o Santo, era também chegar e poder vir a encontrar e abraçar Marie France.

O avistar de Santiago e das torres da catedral de Compostela tocando o céu, acontece no cimo do Monte Agro de Monteiros. Pé Ante Pé interrogou-se acerca do número de ordem que lhe cabia entre todos os vivos e os já mortos que já tinham tido, daquele local, aquela visão.

Cheira a Santiago? Não! Os subúrbios da cidade interrompem o espírito do Caminho, a sucessão de prédios, de urbanizações infelizes, de viadutos e rotundas, as vieiras, camufladas pela poluição visual, perturbaram e desorientaram Sete Pés fazendo-o desesperar pelo desejado encontro da Porta da Faxeira, local por onde entra o pessoal do Caminho Português.

Aí entrados, um encharcado, outro cansado, o outro desoxigenado, um esgotado, outro chateado, o outro esfolado e o outro com sede, já nem se sentiam pés nem nada. As pessoas que enchiam as ruas do centro histórico e as portas das lojas, esvaiam-se em silhuetas de pré-desmaio, todos os rostos pareciam mirar o vulto que chegava, uns pareciam aplaudir, outros largar compaixão, outros escárnio, outros roubar, outros oferecer, outros pisar, outros amparar - a fachada sul da Catedral devolveu alguma lucidez. Entrou em curva larga e errante na Praça do Obradoiro, agachou a sua pequenez de caras para a imagem, conhecida dos postais e gravuras da Catedral! Um flash de memória percorreu os séculos e multiplicou os momentos de todas as almas que já haviam experimentado a sensação: chegar ali depois de tantos passos com dois pés. Sete Pés sentiu orgulho de si, era o primeiro a chegar ali com sete pés!
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Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra

5 comentários:

antonio ganhão disse...

E finalmente Santiago. Espero que tenhamos direito a Missa e ao bota-fumeiro. Vamos ver se te sai um menino do coro.
Bom ano de 2011.

MARIA disse...

Majestade, que texto magnífico !
Sentem-se as emoções do peregrino na nossa pele.
Chuva redentora, purificadora...
O registo dos olhares à chegada de 7 pés é pura e simplesmente indescritível. Duramente realista, lindo.
Aliás toda a criatividade de todos esses pés que cada um por si e dois por todos, expressam diversas emoções do sujeito, é absolutamente fabulosa.
Como já percebeu, estou atrapalhada com os adjectivos. Não os acho, este texto é extraordinário e tudo o mais que não consigo escrever, mas senti. Muito obrigado.

Um beijinho amigo.
Aproveito para lhe desejar a si e a todos os seus um a ano novo muito especial e feliz.

Maria

do Zambujal disse...

Boa prosa, bem contando, tudo (d)escrito como quem caminha por seus próprios pés. Com a cabeça lá em cima, entre as orelhas, e as mãos à obra.

Um abraço

José Lopes disse...

Lá se sentiram todos eles, os pés, orgulhosos de si próprios, o que parece ser uma novidade para estes personagens, agora esforçados.
Cumps

samuel disse...

Bela chegada!
Acho que estou a ficar com vontade de voltar a Santiago...

Abraço.