segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sete Pés Vinte e Um


A noite transformou-se numa tertúlia de resistentes.

Pé Chato reparou que Marie já abria a boca de não perceber coisa com coisa e libertou os outros pés para prepararem o término dos assuntos políticos com os convivas. Tarde demais, remoeu-se Sete Pés. Fora traído pelo ego que o tentou e levou ao centro das atenções, não se lembrava de alguma vez ter sido centro em toda a sua vida. Fora preciso vir para tão longe dos “santos da terra”, para os santos de Compostela, para que alguém reparasse na existência do seu vulto. Só que esquecera, “não se pode servir a dois senhores!”. Enquanto se embriagara com o momento de vedeta da dança de seus pés, tinha perdido a oportunidade de acertar, fechar ou abrir contas com aquela que, ali e naquele momento, era a sua mulher.

Precipitou a despedida e saiu com Marie, cada um com uma cerveja na mão. Ela, já o dissera, iria de táxi para Monte Gozo e o caso terminaria ali.
- Assim? - Interrogou Pé de Vento.
Marie com o verbo maduro, felino e inteligente, obrigou-o a reconhecer as evidências que determinavam o fim. Os sete Pés, pouco experientes em argumentos de namoro, renderam-se, um a um e deixaram Marie moldar o epílogo.

Enquanto caminhavam pelas ruas históricas para a Avenida Figueiroa, descaminhando o passo para dar tempo ao naco de coisas que haviam de ser faladas, Marie revelou-lhe que o seu Caminho não terminava ali. Existia um prolongamento dos Caminhos de Santiago, cuja história vinha de AC. Antes dos descobrimentos marítimos, antes de para ali terem levado os restos mortais do Apóstolo, antes do Apóstolo por ai ter passado, já mortais faziam Caminho até Finisterra. Pensava-se que terminava ali a Terra, daí o nome - Fim da Terra. Melhor dizendo, o fim do que se conhecia. Chegar aí, com o desconhecimento que havia américas, índios, que a terra era redonda, com o convencimento que, para além da linha que separa o azul marinho do azul celeste, existiria um abismo, fim, Deus, trevas, Desconhecido, seria uma experiência digna de reconstituição para qualquer caminhante que tivesse recolhido no Caminho as lições dos antepassados.

Nos dias de hoje muitos são os peregrinos que, chegados a Santiago, entusiasmados no prazer de caminhar, pretendendo adiar o fim da caminhada, encontram nessa razão antiga o pretexto para continuar e só param em Finisterra. E assim seria também para ela.

Nenhum dos sete pés sentiu coragem para lhe fazer proposta de companhia mas, exceptuando Pé Chato ( não a vamos largar! – disse entre pés), todos ficaram no ar perante o dado novo que poderia haver mais estrada para andar.

Pé de Vento velejou para consigo no “e se mais mundo houvera lá chegara” e deu vela a Água Pé para soltar a sua graça:
- Nós lá em Portugal, no extremo oposto a esse, também temos um cabo desses mas não tem um nome tão significante, tem um nome de uma marca de cerveja!
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Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra.

9 comentários:

antonio ganhão disse...

Aos portugueses raramente lhes é dado brilhar na sua própria terra... Devias de publicar esta história na Galiza.

MARIA disse...

É verdadeiramente soberba a sua escrita.
Delicio-me ao lê-lo. Releio, pondero no lugar das palavras.
Sabe Majestade, nas relações a dois muito acontece essa situação que descreve de modo surpreendentemente natural : julguei que os homens não soubessem essas coisas - "os tempos masculinos para o ego, para os amigos, para as coisas de homem" e a "quase insignificância da mulher que vale o ouro da terra, mas quando nada mais o homem tem ...
Lindo, como o descreveu. Obrigado.
É dos retratos mais certeiros da alma masculina, no dizer de um fado da ditosa ANA MOURA "...precisas de agradar a muita gente e eu por mim só a ti queria agradar ..." (fado até ao fim do fim)
Há então mais caminho a percorrer ...
Grande e marcante viagem Majestade !
Vamos ver de seu rumo... cá o espero como sempre .

Um beijinho amigo

Maria

Alberto Cardoso disse...

Olá Majestade.
Pode parecer que tenho estado ausente mas, na verdade, acompanho, a par e passo, tudo que Vossa Alteza nos tem oferecido. Se não comento é porque há outros (leia-se a doce Maria) que o fazem de uma maneira que tão bonita e sentida que tornaria banal o que eu pudesse escrever. Também hoje deixo para a doce Maria o comentário acerca de todo o texto. Só me vou deter neste pormenor: "também temos um cabo desses mas não tem um nome tão significante, tem um nome de uma marca de cerveja!".
Acabo por concluir que se a cerveja Sagres não tem vingado em Portugal tínhamos no Algarve um cabo com o pomposo nome de Super Bock... Uma "graça" destas só está ao alcance de um escritor Maior.
Respeitosos cumprimentos.
Alberto Cardoso

Alberto Cardoso disse...

Reparei agora, Majestade, que a doce Maria me ´ganhou` por um minuto. Mas subscrevo, como sempre, todo o deu comentário.
Alberto Cardoso

José Lopes disse...

Esta narrativa, muito bem escrita, fez-me recordar uns quantos "amores de Verão" da juventude.
Cumps

do Zambujal disse...

Prosa solta, leve e com recheio qb como os bons folhados.

E eu a julgar, até pela sua antiguidade (quuando nasci já havia a cerveja Sagres e a Super Bock e outras são muito mais recentes), que fora a cerveja que dera o nome ao fim e ao cabo.

Vai lá ao Finisterra!

Abraço

Cristina Torrão disse...

Pronto, agora é que ele a convenceu! Não, depois de uma revelação destas, ela tem que mudar de opinião e dar seguimento ao romance! Ou, pelo menos, ir com ele até ao cabo da cerveja!

samuel disse...

E disse muito bem!
Não há cabo dos trabalhos que seja realmente o fim do mundo...

Abraço.

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra

Que bem que escreves. Um PR a escrever assim e com o teu carácter firme endireitava este País. Ou melhor: esquerdava este País.

Abraço