Em Julho o padre levou-me no seu carocha - ele de batina à época, eu com a única roupa que tinha sem remendos - ao Seminário Diocesano para fazer estágio e provas que atestassem o jeito e a verdade da minha vocação. Vi-me deitado à noite, numa camarata com mais trinta meninos que estavam ao mesmo e, pela primeira vez, senti o que era não ter mãe para aconchegar as mantas.
O edifício era quase a estrear, dinheiro de esmolas, dinheiro dos santos, dinheiro alemão, projecto alemão, desenho certo para as funções a que estava destinado, tudo pensado, para os mais pequenos, para os quase padres, para os padres, para as criadas, para as freiras, para o culto, para o estudo, para o lazer, conforto, funcionalidade, inteligência! A gente abria uma torneira e corria água vinda sei lá de onde, fria ou quente, era só escolher, adeus banhos de alguidar, adeus mãos sujas do esterco dos currais, adeus pó do pasto, adeus frio, ai tanto livro que há aqui para ler, ai tanto jogo, dois campos de futebol, ai eu tenho de passar!
E para passar tinha a meu favor ter sido o melhor da classe na minha escola - éramos só dois e o Ginado era mais virado para o gado - ser mesmo eu, e isso era importante nos testes psicotécnicos diários que fizeram durante toda a semana; ser devoto, e isso era evidente na atenção que prestava aos oradores, no modo como entoava o Pai Nosso ou erguia as mãos nas práticas religiosas que, obviamente, incluíam o tirocínio. Na entrevista final com o reitor vieram as perguntas principais:
- E diz-me lá filho, de onde te veio esta ideia de quereres ser pastor do Senhor?!
- Foram dois missionários lá à escola, gostei e fiquei com vontade de ser como eles!
Foram dois jovens felizes que falaram alegremente das missões no ultramar e que projectaram slides coloridos com fotografias da cor quente do solo africano, com grupos de negros sorridentes ao lado de missionários brancos sorridentes, um jipe, mulheres com as mamas à mostra lavando a roupa no rio, uma capela com telhado de colmo - macacos me mordam se eu não hei-de um dia ir também para além mar anunciar a salvação!
Não lhe contei o quadro nem lhe contei que um dia, no fim da catequese, fiquei de espera a uma cachopita de outro lugar para lhe dar umas palavras e mais um beijo. Os amigos do meu lugar não me esperaram e eu tive de regressar a casa sozinho pelo pinhal. A lição do dia tivera uma ilustração do inferno com o Satanás de cornos e forquilha a picar seres metuendos em chamas. Tudo somado, o caminhar sozinho e a pensar, o pecado da luxúria, o medo de me queimarem quando morresse, fez-me lembrar que a melhor forma de me salvar e ter o Céu garantido era ir para padre.
- E quando sentiste o chamamento de Deus, meu filho?!
- Eu vinha da catequese, e lá numa curva onde existem uns carvalhos…
Esperem aí! Compro!... Mas não tenho dinheiro!!
10 comentários:
Eu bem me queria parecer que tu querias comprar uma bicicleta.
Tu sempre foste um pouco beato.
Eu não fiz o caminho da Damasco nem fui chamado, apesar de ter passado por um colégio de frades, onde passei uns tempos que me trazem muito boas memórias.
Abraço do Zé
A maneira como escreve é sempre fascinante.
Quanto ao Seminário eu que fui também educada num meio católico, desse retenho, a qualidade do ensino, a maturidade consequente à experiência, o crescimento, a viragem intelectual, mental.
Com o tempo e não levou muito tempo, criei para mim um Deus diverso do que me ensinaram. Um Deus melhor que qualquer dos homens e supondo que nem o pior dos homens colocaria pessoas a arder vivas em chamas infernais, conclui que Deus para Ser superior não o faria seguramente. Seria magnânimo, entenderia a natureza humana melhor que o melhor dos seres humanos, seria melhor que Gandy , mais que Jesus Cristo e por isso conhecia o amor, seria Amor, Magnimidade,seria paz, serenidade, o equilíbrio!
:)
Um beijinho
Mais um excelente texto.
Um abraço.
Pata
desde o princípio suspeitava que haveria por aí alguma marosca... aconselho-te a pedir um empréstimo a um banco decente, mas prepara-te para levares sopa...
abraço
A coisa cheirou-te a leitoa
Sempre um prazer ler os teus textos
Dizem que é importante ler nas entrelinhas, e que se escreve por linhas tortas...
Cumps
Belo exercicio para a sua memória... vocação já se vê q tinha e voz? Os padres costumam ter uma voz doce, forte.Tb tenho boas memórias da minha adolescência...pena n ter a sua maneira pura e genuína de escrever! Adorei! Fico à espera de maissssssssss. Bjinho amigo
Que excelente texto! E o contexto...
É de escritor.
Grande abraço
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