domingo, 4 de setembro de 2011

A Festa

A festa da minha aldeia não era igual às festas das outras aldeias. Primeiro, porque não tinha santo. Existia no largo um nicho que era enfeitado pela ocasião, tinha um Cristo crucificado de latão mas ninguém lhe ligava patavina. Depois, a festa era num dia de semana, coisa rara e estranha. Finalmente, a festa era diferente de todas as outras porque diferentes eram as gentes da minha terra. E, por estas coisas, muita gente havia das redondezas que tirava o dia para por lá foliar.

Do programa das festas não constava quermesse, banda filarmónica, procissão, leilão mas existiam sempre originalidades e bailes que chegaram a determinar a alguns mordomos a excomunhão. Julgo que o que determinava a diferença era o empenho de todos, a organização, a boa disposição e a empatia que enfeitavam o arraial.

Durante o ano inteiro discutia-se e comentava-se a festa do ano anterior e discutia-se e projectava-se a festa seguinte, à lareira, nos campos ou nas tabernas, como se a festa fosse em si mesma uma tarefa familiar com um fim, como a colheita do milho, a vindima ou a matança do porco. E eu, como os demais, desde pequeno que me fui fazendo aos meus papéis porque para todos havia o seu lugar. As crianças varriam os recintos e corriam em recados, os burros iam buscar a verdura das acácias para enfeitar as ruas, as raparigas faziam as flores de papel, os rapazes espalhavam os cartazes, as mulheres tratavam da comida, os homens erguiam palcos e vedações, as velhas zelavam pelas tradições, os velhos trespassavam artes.

Mas foi no tempo em que eu tive idade para ser mordomo que a festa se transformou.

Entusiasmados pelo crescente sucesso da festa mudámos a data para o fim de semana e, ano após ano, começámos a edificar estruturas permanentes, a contratar serviços, a entregar explorações e até a arranjar um espaço de programa para o prior fazer das suas.
Ao fim de alguns anos a festa ganhou dimensões muito maiores que a própria aldeia, a televisão descobriu-a e filmou-lhe as diferenças. A exposição mediática ditou o meu afastamento. Começaram a vir pessoas que não tinham por razão de vir o convívio são, com gente tão boa, a conversa com o velho que fazia os balões de ar quente, o programa cultural ou o vinho da terra e, pior do que isso, começaram a ser a grande maioria. Vinham, porque tinham visto na televisão e, quem sabe, podiam também eles ser vistos ou pelo menos, se voltassem a ver poderiam dizer que tinham lá estado.

É difícil explicar aos amigos que me afastei da festa porque já não dá trabalho, porque já tem missa, porque tem muita gente e que dar na televisão tira-lhe força.

A este propósito vale a pena ler uma conhecida crónica de um conhecido autor que nunca fez uma festa mas gostou duma.

12 comentários:

Maria disse...

Lindo...
É uma grande aldeia, também minha!

José Lopes disse...

Nunca me vi em alhadas dessas mas à festa do Avante já fui, e não apenas uma vez.
Cumps

Alberto Cardoso disse...

Olá Majestade.
Que saudades eu tinha desta maneira de (d)escrever! E que grande era a festa lá na aldeia quando ainda era pequena!

antonio ganhão disse...

Talvez a tua alma encontrasse finalmente a paz... detecto em ti um lado anti-social perigoso.

Prometo nunca ir à tua aldeia, agora que ma deste a revelar.

salvoconduto disse...

Vocês eram mesmo forretas, até o cristo era de latão. Se fora de cobre ainda era capaz de fazer uma visita à tua aldeia e rezar aos pés dele.

MARIA disse...

Que magnífico texto o seu!
Tinha saudades de lê-lo assim, muito obrigado.
Também gostei da crónica de MEC sobre a outra Festa.

Um beijinho sempre amigo


Maria

do Zambujal disse...

A cada um a sua festa. Embora haja uma Festa que quer continuar a ser nossa mas sempre aberta a todos. São muitos a construi-la, sem santa ou santo, ou senha ou sanha, sem padre de qualquer religiãoa debitar homilias.
Será difícil continuar assim, parecida com o que foi a tua festa da tua aldeia. Difícil é, mas é possível!, e todos os anos o vamos provando, sendo sempre a melhor e a maior a do próximo ano.

Gostei muito do teu texto. És um excelente prosador.

Um abraço

Mar Arável disse...

Primoroso texto

Também eu gosto muito da festa
na minha aldeia
cada vez mais
na margem esquerda da vida
janelas abertas portas rasgadas
para não ferir o rumo certo do rio

Abraço

Compadre Alentejano disse...

Até parece uma descrição das Festas de Santa Maria da minha santa terrinha...
Parabéns ao excelente texto.
Abraço
Compadre Alentejano

samuel disse...

Muito, muito bom!

Abraço.

Fernando Samuel disse...

Grande texto para uma festa que já foi...

Um abraço.

maceta disse...

demorei a ler mais do que é costume, mas apreciei a crónica do dito da direita.

abraço