sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Hei-de morrer

Estou a escrever
Para dizer que vou morrer
Ainda há-de haver
Em nome de Deus virgens a explodir em Telavive
Em nome da América soldados gordos a morrer em Kandahar
E em meu nome homens que não me conhecem a falar

Estou a escrever
Porque irei morrer
Ainda há-de haver
Crianças a morrer de fome em Mogadíscio
E um menino chamado Aparício
Assassinado em Janeiro no Rio

Caramba irei morrer
De frio a escrever
E ainda há-de haver
Um Portugal pobre e amordaçado
Um povo orgulhoso de lhe chamarem zé

É hei-de morrer
A escrever a mesma coisa
Com outros confortáveis blogueres de T3
Conformado por ter passado a minha vez
De despir e ter nua a verdade à minha frente
Entre operários que desceram a rua que era para subir

É hei-de morrer a rir
De mim e qualquer coisa
Hei-de partir a loiça a definhar
Com o Sol todos os dias a pôr-se e a nascer
Com a Lua aluada a crescer e a minguar
E por cá a Terra a rodar em voltas sempre iguais

Ah hei-de morrer
Se não morresse era demais
A ver as gerações passarem em mutação
E os pobres desgraçados humilhados
Sempre à espera duma tal revolução
Que sempre é vencida

Escrevam da vida escritores de secretária
Que hei-de morrer a ouvi-los escrever
Sem nunca pegarem numa palavra a atirar
Para tirar os dentes aos párias que demandam
Às castas baixas o vinho sem papéis
Andam para aí uns que se dizem democratas
Abatam-nos são mentirosos e ranhosos

Hei-de morrer de baba e ranho
Num futuro igual a antanho e a dormir
Com a América Latina a sonhar
Com a Europa em obras
Com Putin entre ursas
Com Bush entre vacas
Com uma qualquer peça de caça a moer-me o juízo

Ai a vida é desesperançada
Porque não há nada que mude este mundo e este país
Quis quero quererei

Hei-de morrer
E se eu morrer de dia a seguir haverá uma noite
E se eu morrer de noite a seguir haverá um dia
E quer seja de noite ou de dia haverá uma madrugada
Em que depois se irá lutar
E depois de se lutar haverá dia ou nada
E depois da noite haverá luto ou alvorada

Olha se eu morresse
Ainda gostava de viver o que acontece
Talvez depois de eu morrer por escárnio
Alguém invente a paz o amor e a democracia

10 comentários:

José Lopes disse...

Todos morreremos, e o que fica para os que nos sucedem será o que tivermos construído, feito, ou deixado por fazer.
Cumps

do Zambujal disse...

O teu poema inventa.
Inventa porque, embora não pareça, é a certeza de que tu, ele, eu... somos nós, os que fomos e os que seremos.

Gostei muito de ler o que escreveste... mas, desculpa lá!, não há revoluções perdidas, há pequenos passos falhados na imensidade de um caminho, que é o da revolução.
E não há quandos, há, sim, como recuperar passos perdidos sabendo que nenhum paso se repete, que são, sempre e todos, passos novos, diferentes, a terem de ser dados de outro modo. Do modo que for possível, no tempo em que estão a ser dados. Sempre na luta pelo que parece ser impossível... mas só depende de nós.

Um grande abraço

Compadre Alentejano disse...

Na minha terra diz-se que não fica cá nenhum para galo de entrudo...
Abraço
Compadre Alentejano

Kaos disse...

Aguenta mais um pouco
Não morras ainda hoje
Que amanhã nascerá outro dia
E essa será certamente
a hora de não morrer.
Outra vez
Porque outro dia nascerá amanhã.
Talvez
Nasça o dia que há tanto esperas
nos dias em que não morreste

Um abraço
kaos

salvoconduto disse...

Não morras, porra, sou eu que estou a seguir na lista, que morra o Dantas, porra, que afinal parece que não morreu, quem morreu foi o Almada.

O Doutor Nosmo King telefonou-me e disse...

... que não quer que eu morra porque a "revolução" já está em marcha. Imparável! E que daqui a 2 ou 3 anos o Mundo será muito melhor. Vou esperar para ver...

O Puma disse...

Estamos sempre a desnascer

mas se possível devagar

a menos que sejam canalha
que nunca devia ter nascido

Fernando Samuel disse...

Regressado de férias, aqui fica o abraço amigo.

Zé Marreta disse...

Estás um poeta! Deve ser dos ares de Fátima...

MARIA disse...

Soberbo !