quinta-feira, 12 de abril de 2012

O Espírito Santo e os Pink Floyd

Preparou o carro, a bagagem e a família para a viagem. O carro era o grande investimento da sua vida, o cumprimento de um sonho comum. O passeio seria o primeiro da família em automóvel e o destino o cumprimento de uma promessa antiga.

Quando jovem, fora de comboio três temporadas fazer rancho para a faina do arroz. Sentira o cheiro do suor dos trabalhadores que, com ele, faziam a faina do arroz. Sentira o cheiro do dinheiro do banqueiro Espírito Santo nas lamas da faina do arroz. Ao fim de tantos anos, voltar à herdade da Comporta, era o pagamento de uma dívida que tinha com a sua memória, uma obrigação de testemunho que devia ao filho, uma aventura que lhe poderia facultar o prazer de reencontrar velhos amigos que ficaram sadinos.

Em troca das velhas histórias que fez ouvir durante a viagem, teve de gramar com as músicas do filho que explorava a novidade do gravador de cassetes. Em cada trinta quilómetros a cassete  pirata era virada ou substituída: Atom Heart Mother - Pink Floyd; Close to the Edge – Yes; Deja Vu - Crosby, Stills, Nash and Young; Rattus Norvegicus - Stranglers.

Chegados, tiveram casa porque Carminda Rego reconheceu o velho amigo e o velho amigo reconheceu Carminda Rego. “Tu a certa altura desapareceste!...”;“Fui presa!...”; “Isto ainda é do Espírito Santo?”; “ Isto agora é nosso, companheiro! Foi nacionalizado!…”

De regresso à terra contente de rever e de cumprir, orgulhoso do comportamento da família e do carro calhou dizer “ eu posso não voltar mais, mas este carro...”

Preparou o carro, a bagagem e a família para a viagem. O carro fora o grande investimento da vida de seu pai. Estimara-o após a sua morte e por ele se fez sócio do Automóvel Clube de Portugal. Este era o tempo de voltar com ele a Comporta, de poder voltar a ouvir as velhas cassetes, de fazer transferir, via pai, memórias de avô para neto.

Entusiasmaram-se com a aventura de ir tão longe no velho carro, gramaram ouvir as velhas cassetes, encheram-se de histórias de arroz e alojaram-se no aldeamento Casas da Comporta. Não encontraram sinais de Carminda Rego mas viram o poder do Espírito Santo.
Regressaram hoje a casa, de comboio.
- Pai! Não penses mais nisso! Já estava tão velho!
- Estou velho demais para me preocupar com o carro! Já nem me lembro da marca dele! Eu estou aqui é a pensar no que é que o Mistério da Santíssima Trindade tem a ver com o regresso do Espírito Santo à Comporta!...
- Pai!...
- Filho!...
E dito isto benzeu-se em voz alta e pensou que era Abril.

(A Herdade da Comporta é a maior herdade privada existente em Portugal)

5 comentários:

maceta disse...

ironia subliminar...

abraço

do Zambujal disse...

Muito bem contado!
Como se a história da Herdade da Comporta (e não só... a História!) se contasse a palmos, geração a geração. E com verdade. Em verdade te digo!

Grande abraço

Anónimo disse...

Caramba, valeu a pena reclamar! E esperar. Era isto que me estava a faltar, estas histórias lindas e tão bem contadas. Vou lê-la mais uma vez.

Anónimo disse...

Muito Linda sem dúvida e bem contada como sempre esta história...não é por acaso q aki venho sempre ler as histórias do Rei dos Leittões...mas desta vez não resisti a escrever um comentário.Come-se por lá belo marisco...Elogio e agradeço os momentos de bom humor q nos proporciona.Desejo-lhe um feliz fdesemana e deixo um beijinho.

M A R I A disse...

Todas as minhas janelas se abrem no deslumbramento da sua "Comporta".
Intelectualmente arejada por uma tradicional escrita original e de bom gosto.

Um beijinho

Maria