quarta-feira, 27 de março de 2013

Dia Mundial do Teatro


O Bichinho do Teatro

Carlos Bicho, Carlitos no meio familiar, Bichinho entre os colegas, já tinha tido a experiência de actor na peça os Três Porquinhos, em pequenino mas era agora, já de buço, a primeira vez que pisava palco com pano e luzes numa sala de plateia cheia e às escuras.

O pai fizera-se à mãe, quando jovens se encontraram a sós num recanto dos bastidores do teatro da colectividade, ele ponto, ela contra-regra e honraram esse encontro mesmo depois de extinta essa actividade, participando como público em tudo o que era teatro, fosse na aldeia, na cidade, no Carmo ou no Trindade.

A professora Gertrudes era professora de português e honrava a sua profissão como especialista em Maias de Essa, amante de Camões e mulher de Gil Vicente. Da mesma forma que só lavava com Omo, só barrava o pão com Planta e só bebia Sagres, limitava orgulhosamente a sua cultura literária a este trio.

Há muitos anos que encenava com os seus alunos o Auto da Barca. Um lençol branco e outro vermelho a cada um dos cantos do palco; cada um com três cantos presos, um em cima e dois em baixo, de modo a fazerem vela triangular; na base deles mais dois lençóis castanhos presos a três cadeiras e a formar arco faziam as barcas; uma moça meiga em fato de comunhão solene a fazer de anjo; um moço espevitado, com rabo e cornos de diabo; o resto da turma nos restantes papéis; com jeito ou sem jeito, com brancas ou com rimas e “ó da barca” soavam as pancadas.

O pai do Carlos além de se auto-considerar com currículo de espectador, suficiente para desprezar as competências da professora encenadora, recomendou ao filho a recusa do papel secundário que lhe fora anunciado e acrescentou:

- Tu dizes-lhe que, em vez de participares na peça, preferes fazer uma recitação poética no final! Ela que não se preocupe com a escolha que eu trato disso!

Realizados o auto e os aplausos, Carlitos foi apresentado e apresentou-se sozinho, frente à ribalta, focado por um potente projector.

Todo ele e tudo nele abanava. De voz a abanar tentou começar. Nos rápidos pensamentos que lhe abanavam a cabeça pensou no que o pai, espectador, estaria a pensar. Não o conseguiu distinguir na penumbra da assistência repleta de olhos escuros e faces sombrias. Tentou novamente a primeira palavra. O olhar da professora Gertrudes à frente da fila da frente cortou-lhe a primeira sílaba. Sentiu um líquido viscoso escorrer-lhe pelas calças abaixo. Era o golpe final. Só lhe restava desistir corajosamente. Deu meia volta em direcção ao fundo do palco, esperou risos de troça e só ouviu silêncio, convenceu-se que com a luz intensa toda a gente via as calças claras com a mancha escorreita e escura e num acesso de raiva, virou a cara ao público e declamou:

- Caguei para isto tudo!

E dito isto, saiu das luzes com uma bomba de gargalhadas a estoirar entre estilhaços de palmas a aplaudir.

A professora Gertrudes que além de Essa, Camões e Gil Vicente também adorava microfones, subiu ao palco, cantou desculpas por esta mas também por outras quaisquer coisinhas e chamou ao palco a directora, o presidente, a vereadora, o pároco e a senhora que emprestara os lençóis.

Fora de cena, sob o fundo dos discursos que duravam mais tempo do que a própria peça, sob as salvas pedidas a este e àquilo, que eram mais devidas que aos actores, pai e mãe consolavam o filho:

- Estiveste bem! Foste verdadeiro e ninguém viu! Foste o verdadeiro actor! O público aplaudiu! Que mais queres tu?
- Quero ir para casa para mudar de calças!

5 comentários:

Anónimo disse...

Cordeiro É DESDE ESSE DIA, QUE NO TEATRO ”MERDA” É SINÓNIMO DE SORTE.

O Puma disse...

No dia do Teatro
falou Sócrates

ressuscitou o cantar do cisne

Zé das Fisgas disse...

Fui ontem a Beja.
Encontrei o Manel Jaquim, amigalhaço de há muitos anos e que vive perto de Beja.
Eis o diálogo, que transcrevo com bastante rigor:
-Então Manel Jaquim, onde tens andado?
-Ó amigo Zé, olha, por aí... Andei à tua procura para te dizer que casei... Casei à moda antiga, vê bem...
-À moda antiga? Então foste naquelas carroças que havia antigamente, levaste um banho de arroz...
-Qual quê, Zé, casei à moda antiga, porra, CASEI COM UMA MULHER !!!!

(Em Beja a tradição ainda é o que era)

M A R I A disse...

Deliciosa narrativa sobre o Teatro, digo mais, deve ter sido o momento mais genuíno e espetacular de toda a trama, esse, o protagonizado pelo pequeno Carlitos.

Um beijinho sempre amigo

do Zambujal disse...

Diria mesmo excelente patada. Talvez mal cheirosa mas excelente.
Tens de pôr isso em cena. Encena!

Um abraço de admiração