Não dava nada
para a escola. Não aprendia nada na escola! Não andava a fazer nada na
escola!...
E, no
entanto, o irmão mais velho era muito inteligente, a irmã mais velha era muito
esperta, ambos saindo aos seus. Mas ele, talvez por ter nascido sem ser desejado
nem esperado, com a mãe a caminho dos cinquenta, já fazendo as noites com o macho
sem atender às luas, aos períodos ou ao “tira antes”, nasceu assim, mal
vingado e com uma falha.
Ao fim de
três anos não passava do nome, do dois mais dois são quatro, duma dúzia são
doze e do Tejo é o maior rio de Portugal.
- Uma falha é
pouco!
Retorquiu ao
pai e na presença do aluno, a professora Palmira.
O homem
pensou: eu nem sequer andei na escola e tenho-me safado, ele ainda é novo e
há-de aprender a ir à lenha, a juntar palha e a andar com o burro - amanhã já
não vem!
Libertar-se-ia
da troça dos colegas, daquela crueldade infantil que todos já sofremos,
exercemos ou, pelo menos, presenciámos. O pior de todos era o Júlio das Moitas.
O pobre rapaz aguentava dele as torturas mais porcas, as insinuações mais
sujas, as piores humilhações e respondia baixinho:
- Um dia
talvez te fodas!...
Mesmo
passados anos de ter saído da escola, quando o via, o carrasco exercitava provocações
ordinárias acerca da coisa da irmã dele, da autosuficiência sexual dele, ou
mesmo chamando-lhe a atenção para que olhasse: que o travão da carroça ia
travado, que tinha perdido uma roda ou que a coisa do burro estava de fora.
Ele, ingénuo,
olhava para verificar, para logo a seguir reparar no gozão de riso rude, e
dizia para si mesmo:
- Um dia
talvez te fodas!...
Até que num
certo ano, num certo dia, de tanto ser esticada, a corda partiu:
- Então não é
que fodi a tua irmã e ela tem a coisa a atravessar!
Ele, filho de
boa gente, pensou baixinho: tenho de foder este gajo!
Júlio das Moitas vivia numa casa, nas traseiras da qual, num patamar mais alto, passava a
linha de comboio. Se eu fizer
descarrilar o comboio, ela tombará pela encosta abaixo, cairá sobre a casa e adeus
Júlio. Como eles andam a substituir os carris e há muitos soltos nas bordas, eu
vou lá de noite, atravesso um deles sobre a linha, vem o comboio e…
E pensado,
assim fez.
Gorada a
tragédia pensada porque descoberta a tempo.
Descoberto o
autor ao fim de dois passos da investigação.
Foi preso e
transferido mais tarde para o Júlio de Matos para passar o resto dos seus dias.
Júlio das Moitas
morreu pouco tempo depois da tentativa de homicídio, quando, sentado no carro
do seu burro, atravessava a passagem de nível sem guarda. Conta-se que, durante
muitos anos, uma cruz com uma tabuleta de madeira assinalou o local: aqui
morreu Júlio das Moitas, solteiro, deixando desflorada uma mulher dez anos mais
velha.
É claro que
deve ser mentira o texto da inscrição como também o poderá ser parte da
história que passou pelas teias de ofício do narrador. Verdade é, porque me
contou o meu pai, que foi sempre homem de verdade e pouco dado a fantasias que,
quando o juiz perguntou ao réu como conseguira sozinho mover o carril para o atravessar
na linha, este terá respondido seco e frio:
- Fui eu, o
diabo e a tranca!
10 comentários:
A coisa a atravessar é como um carril atravessado na linha que faz o comboio descarrilar.
"Estória" bem contada a tua.
Um abraço
Este é mais um conto que vale para além do que é contado...
Obrigado
E a Grécia aqui tão perto a dardejar
Sempre um prazer ler-te
Que bela "estória". Este Pata é um poço de imaginação.
A ‘short story’ requer uma técnica difícil de trabalhar mas que dominas cada vez melhor.
ele há coisas que só mesmo urdidas pelo diabo!...
(agora reparo que aquele grego do cachecol tem um certo ar mefistofélico ...)
Pergunta....
Porque é que os robôs não podem comentar?
Muito bem contado.
Merece ser divulgado o teu contar!
Belo conto!
Comme d'habitude.
JF
vais a caminho da meia idade, mas tens boa imaginação
abraço
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