sábado, 9 de julho de 2016

O dono da cerejeira

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À parte meia dúzia de carvalhos centenários, a cerejeira era a árvore mais imponente da aldeia. Ainda por cima, por casualidade, era a única da espécie no povoado, o que fazia dela uma atração - toda  a gente gosta muito de cerejas.

O dono da cerejeira era um homem seco, rijo e frio, feio, magro e alto, de poucas falas e poucos amigos, de barba de dias exceptuando aqueles em que a fazia, remendado dos fundilhos aos joelhos, chapéu desabado e queimado do sol, para quem não havia domingo, casado com mulher que com ele condizia e de filhos já partidos para paragens melhores.

Para além dos talhões que tinham à porta e que davam para a sopa, outro rendimento não tinham senão o dos tremoços que a mulher vendia à saída da missa e o do trabalho do homem, seco, rijo e frio, que era a quem se falava para abrir um poço. Trabalho duro e sazonal para que nasceu talhada a figura, capaz de aguentar horas no fundo do buraco, cavando, cavando e enchendo o caldeiro, solitário e ao fresco, lançando apenas as palavras necessárias para a luz cá de cima onde teriam de estar outros dois ao sarilho. E pronto, as cerejas, vendidas como os tremoços à saída da missa, também davam algum - toda  a gente gosta muito de cerejas e aquela cerejeira dava cerejas para roubar e vender!

Os mais velhos, de dezasseis, dezanove ou mais, faziam os assaltos com algum profissionalismo, iam em bando já noite avançada, ficaria alguém à porta do dono para dar o alarme se o homem-fera ou a megera dessem sinais de acordar, outro alguém no caminho que levava a cerejeira, mais dois ou três junto ao tronco enquanto os demais subiam à árvore e faziam a colheita.

Mas nós, de doze ou catorze, com horas de recolher, teve de ser mais cedo, e era a primeira, foi de entrar a matar. Silenciosos, é certo, mas sem outros cuidados, descalçámo-nos para subir a árvore, primeiro o tronco e depois, espalhados pelos ramos, macaquinhos, macacões, comíamos as cerejas que vinham dar às mãos, ninguém levara saco, tratava-se de consumo imediato.

Eis senão quando a voz do dono se fez ouvir cá em baixo, primeiro alto, depois só resmungando, palavras impercetíveis que nos fizeram tremer os pés descalços. Por intuição animal, camuflámo-nos, quietinhos, caladinhos, cada um juntando o seu tronco ao tronco que empoleirava para que, com a ajuda da noite, o homem não identificasse vivalma. 

Ao fim de alguns minutos de resmunguice e de rodeios no terreiro da copa, a fera retirou-se e sentimos a porta da sua casa a bater. Foi-se embora?! Perguntámos baixinho e permanecemos imóveis durante um tempo, não voltasse ele armado para nos correr à pedrada, à paulada ou até à caçadeira! O mau génio daquele homem era um risco o que, por contradições da natureza humana, aguçava mais o desafio e a vontade de o roubar e tornava ainda mais apetitosas as cerejas.

Não voltou. Cumprido o tempo de segurança, descemos um a um com a digestão interrompida, e com os pés na terra demos por nós vencidos. Tamancos? Chinelos? Sapatos? Sapatilhas? Viste-los! O Torto, que era pé descalço, era o único que ria!

Não havia maneira de no dia seguinte, em cada lar, cada um contar senão a verdade! Mesmo que um inventasse uma mentira convincente, não se conseguiria enganar tanta mãe junta, elas falariam umas com as outras e a alhada viria sempre ao de cima.

Comigo foi assim.
- Antes que o teu pai saiba, vais já comigo por aqui abaixo a casa do ti Manel!... A partir de hoje, à noite só para as descamisadas!... 
 E lá fui eu puxado pelo braço, a tentar acompanhar o passo da mãe educadora, com um puxão mais violento cada vez que tentava a minha defesa com argumentos como o de "roubar para comer não é pecado", "não fui só eu", só comi pra aí meia dúzia"...
- Garanto-te que se ele não te der os sapatos vais começar a andar descalço como o Torto!
...
- Manel! Peço-te perdão por este desgraçado! Manel sabes como é a canalha! Manel ando aqui com uma dor há meses e nem dinheiro tenho para ir ao doutor Teixeira! Manel o meu homem também está a pensar em ir para França e depois havemos de fazer um poço! Manel este gatuno, ainda hoje o vou obrigar a ir à confissão!.... Dá-lhe os sapatos Manel e diz-me quando precisares que eu venho um dia para o teu sacho sem ter de ser à troca!...

Seco, rijo e frio, tirava água a balanço para a horta, sem nunca tirar os olhos do poço, do balde e do regueiro mas, quando a minha mãe parou com a ladainha, atirou seco, rijo e frio.
- Ele que vá confessar-se mas quem lhe dá a penitência sou eu! Ele que agarre em dois baldes que estão ao pé da cerejeira, que suba a ela e que os encha! Quando os tiver cheios venha aqui ter comigo e pode ir para casa calçado!

Se bem me lembro, creio que os outros companheiros recompraram o seu calçado. Eu fiquei honrado de ter tido tratamento diferenciado e passei a admirar mais o Torto e a minha mãe porque não me obrigou a ir à confissão!

Nota: Sei que ficaria bem na história contar que continuo a gostar muito de cerejas. Acontece que ainda o Cavaco desgraçava o país como primeiro ministro, ouviu-o declarar que gostava muito de cerejas e que muitos dos seus admiradores lhe enviavam caixotes de cerejas - continuei a gostar de cerejas mas nunca voltaram a ter o mesmo gosto!

9 comentários:

Anónimo disse...

Que palavras profundas e lindas do nosso tempo, quando todos nós fazíamos essas traquinices, acabei de recordar o meu tempo de inocência, das brincadeiras de rua, aqui onde vivo, assaltava-mos um enorme damasqueiro eh eh eh que belos damascos! Venho sempre ler as suas memórias, como eu as adoro!

Pata Negra disse...

Muito obrigado anónimo! Anónimo porquê?!
De qualquer forma, por motivos maiores, uma abraço pata

do Zambujal disse...

Podia subscrever o que escreveu o anónimo (e eu até tenho pergaminhos...) mas mando-te, do Zambujal, um forte abraço, grato pelo que me deste a ler.
Tinha ficado tão bem em Peras Ruivas! E olha que correu muito bem. Com pouca gente mas com muita animação e "sastisfação". Fizeram lá falta umas cerejas do ti Manel.
Abraço

cid simoes disse...

Também andei à 'chinchada' e quando souber escrever assim, conto como foi.

José Lopes disse...

Muitas vezes fui à "chinchada" com os amigos de brincadeiras, geralmente às uvas e aos pêssegos, que os dos vizinhos sabiam sempre melhor... Sustos foram alguns, mas era isso que nos fazia voltar, eheheh

Cumps

O Puma disse...

Excelente como sempre
memórias vivas
Abraço

Manuel Veiga disse...

diz-se que a conversa é como a cerejas
estou tentado a acreditar.

dás-nos conversa com o mesmo gosto de quem "rouba" cerejas

abraço

Maria disse...

Texto extraordinário em todos os sentidos.
É sempre um gosto lê-lo.

Mar Arável disse...

Os donos da minha cerejeira são os melros