sábado, 25 de março de 2017

Fernando Pessoa disse sobre Fátima:


Que me perdoem os crentes e não crentes, os devotos e os hereges, os fidalgos desta corte e a plebe deste reino, esta insistência na questão religiosa e nos milagres de Fátima, que outra razão não encontro para a minha obsessão se não as linhas tortas por que o Altíssimo costuma redigir ou mão do Diabo iletrado que de mim se serve para escrever.  A verdade é que não consigo impedir o impulso, uma força oculta que me leva os dedos sequencialmente às teclas, de modo a digitar palavras não pensadas, que juntas esboçam pensamentos, a citar, a transcrever, qualquer coisa que me ultrapassa, uma tentação que não me permite ficar calado perante os reclames ao Centenário das Aparições de Fátima. Talvez, quem sabe se lá no fundo o que me move é o sentimento da impossibilidade de assinalar aqui o centenário da minha vinda à Vida e à luz do Sol.

Desta vez, quem será chafurdado é Fernando Pessoa. Vangloriado pela sua poesia, pela forma como expressou o que sentia e não como pessoa igual a tantos outros que nos seus versos se revêem, que como ele se abismam, tão sós como ele, que em copos sós, de vidro igual, afogam as questões da existência. Eu não sou desses; o meu maior regalo é beber pelo gargalo que vai de boca em boca, é amarrotar as folhas em que escrevo, é ornamentar o biombo do meu hall de entrada, é pôr na borda do prato os poemas sem poder de fogo.

- No entanto, ó Nando, quão semelhante acho o travo do teu tinto ao meu quando os cotejo! E cito-te, por conveniência, com muito gosto! Muitas vezes, para além dum verso, desta vez para revelar a tua posição em relação às aparições de Fátima:
"
Fátima é o nome de uma taberna de Lisboa onde às vezes... eu bebia aguardente. Um momento... Não é nada disso... fui levado pela emoção mais que pelo pensamento, e é com o pensamento que desejo escrever. Fátima é o nome de um lugar da província, não sei onde ao certo, perto de um outro lugar do qual tenho a mesma ignorância geográfica mas que se chama Cova de qualquer santa. Nesse lugar -- em um ou no outro-- ou perto de qualquer deles, ou de ambos, viram um dia umas crianças aparecer Nossa Senhora, o que é, como toda a gente sabe, um dos privilégios infinitos a que se não parte a corda.

(...) e assim como passou a haver "liberdades" em vez de "liberdade", assim também passou a haver crenças em vez de crença, fés em vez de fé, e vários outros plurais ainda mais singulares.

(...) Seja como for, o facto é que há em Portugal um lugar que pode concorrer e vantajosamente com Lourdes. Há curas maravilhosas, a preços muito em conta; há peregrinações que dispensam o combóio (criação do estúpido etc!).

(...) O negócio da religião a retalho, no que diz respeito à Loja de Fátima, tem tomado grande incremento, com manifesto extase místico da parte dos hoteis, estalagens e outro comércio desses jeitos--o que, aliás,está plenamente de acordo com o Evangelho, cuidando-se de bens materiais,"Buscai-vos o Reino de Deus e todas essas coisas vos serão acrescentadas".


Fernando Pessoa Jornal de Letras nº 1010 de 17-30 de Junho de 2009

6 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Milu disse...

É tão confortante saber que neste mundo houve, e continua a haver, pessoas lúcidas. Apesar de poucas.

O Puma disse...

O Papa Francisco
de passagem
por Fátima
só vai demorar-se na noite das velas

Anónimo disse...

Pasmo perante a actualidade do conteúdo.E, penso, Fernando Pessoa nunca esteve em Fátima.

Manuel Veiga disse...

Majestade,

com os ossos a estalar de tantas vénias, sugiro que o dito Nando da Tasca seja nomeado Condestável do Vosso Reino.

este fidalgo da corte quessassina.

Manuel

Zambujal disse...

Obrigado por mais este contributo terapeutico para a sanidade mental do tão maltratado povinho!
Esse testemunho por interposta Pessoa é excelente.
Saudações lúci(d)as