Não me incomoda Fátima enquanto questão de Fé, enquanto acontecimento de dimensão política da República ou enquanto história que se desenvolve segundo a premissa de “quem conta um conto aumenta um ponto”. Incomoda-me sim quando, na história escrita pelos vencedores, a deturpação e a fantasia denigrem injustamente o caráter dos vencidos ou nos desconsideram, fazendo-nos passar por tolos.
Porque é mentira que os três
protagonistas principais, as três crianças, os três pastorinhos, os três
videntes, Lúcia, Jacinta e Francisco, alguma vez tenham estado presos na
cadeia; porque em todo este enredo se vão confundido os acontecimentos reais, a
ficção e o sobrenatural; porque na evolução das versões, na literatura sobre o
tema, no imaginário dos devotos e até no cinema, se foi cimentando o cenário onde as três criancinhas vivem os
horrores da prisão, sujeitas à tortura, a ameaças de morte e ao convívio com
perigosos criminosos; porque em todo este guião surge sempre, como o “mau
da fita”, o administrador de concelho de Ourém, Artur Oliveira Santos, deixo
aqui um pequeno contributo para a reabilitação do seu nome e de alguma verdade
histórica.
Paralelamente, sendo sensível a
testemunhos orais que resistiram às duas ou três gerações que nos separam da
época dos acontecimentos, que asseguram
que o pai ou a avó lhes contou lembrar-se de ter visto os pastorinhos na varanda
brincando com os filhos do Administrador ou até mesmo na procissão das Festas
da Nossa Senhora da Assunção, senti-me incomodado pela rara documentação que denuncia
essa mentira, razão única que me levou a fazer este trabalho.
Se ao princípio a pesquisa que se
exigia me deixou frustado eis que, por mero acaso ou mão divina, encontrei,
duma penada, alimento para a minha intenção – provar que os pastorinhos nunca estiveram na prisão – e, para
cúmulo da sorte, numa única fonte, o site
oficial do Santuário de Fátima, num único documento, Documentação
Crítica de Fátima – Seleção de Documentos (1917-1930).
Não tendo perfil de
historiador, limitar-me-ei a transcrever excertos que, na minha opinião, provam
que o “mau da fita” levou as crianças para
sua casa, de 13 a 15 de agosto de 1917, e não para a prisão, com os propósitos de evitar a “especulação
clerical” – expressão do próprio - à volta das mesmas, de averiguar se existiam
outros intervenientes por detrás das aparições e de impedir que no dia 13
acontecesse mais uma manifestação de “culto externo” – proibido pela República.
Vamos então ao(s) documento(s), reduzindo
as notas ao essencial, muitas vezes apenas as páginas em que constam, na dita Seleção de
Documentos, para tornar a dissertação mais concisa.
A apresentação na ordem cronológica
pode parecer natural mas não é inocente, tendo em conta o facto da história de
Fátima ter estado, desde o início, em evolução permanente, como não será por
acaso que a própria seleção em análise demarque o ano 1930, altura que alguns
autores assinalam como o início da Segunda História de Fátima.
1- (Pág. 39) Carta do Padre Manuel Ferreira, pároco de Fátima, ao redator do
jornal “O Ouriense”, a defender-se da acusação de cumplicidade com o
administrador de Vila Nova de Ourém, no rapto dos videntes no dia 13 de agosto
de 1917 – 25/08/1917.
“Chegou no dia 15, a autoridade com as crianças a minha casa, onde
se ajuntaram os pais das mesmas e muitas outras pessoas perante as quais
pretendeu com todas as amabilidades
explicar o seu modo de proceder.”
Comentário:
O Administrador foi amável.
2- (Pág. 50) Depoimento do Pe. António dos Santos Alves ,
pároco das Cortes, sobre a conversa com Lúcia e Jacinta, em Reixida, freguesia
das Cortes sobre a sexta aparição – 17/09/1917.
“Neste dia disse-lhe que se elas no dia 13 não tivessem sido levadas pelo administrador, o
milagre (para o povo) não teria sido tão conhecido.”
Comentário:
É Nª Senhora, a Própria, que utiliza o termo “levadas” sem recorrer a
outros como “presas” ou “prisão”.
3- (Pág. 51) Interrogatório aos videntes Lúcia, Francisco
e Jacinta, e a Maria Rosa, mãe de Lúcia, feito pelo Dr. Manuel Nunes Formigão,
aquando da sua segunda visita à Cova da Iria, no intuito de completar as
impressões colhidas no dia 13 de setembro de 1917 - 27/09/1917.
“O sr. Administrador quis realmente que eu lhe revelasse o
segredo, mas como eu não o podia dizer a ninguém, não lhe disse, apesar de ter
insistido muito comigo para esse fim.”
Comentário:
A Lúcia fala de” insistência”, não fala de ameaças, nem de caldeirões de azeite,
nem de prisão.
4- (Pág. 61) Redação
literária dos apontamentos dos interrogatórios do dia 11 de outubro de 1917,
feitos pelo Dr. Formigão.
“Quando as crianças foram presas pelo administrador de Vila Nova
de Ourém foi alguém reclamar que as restituissem aos pais? – Um irmão do
Francisco e da Jacinta foi falar com
elas a casa do administrador. A senhora do administrador perguntou se ia
buscar as crianças, ao que ele respondeu negativamente. O próprio administrador
as veio trazer à Fátima.
Comentário:
Fica a ideia que o rapaz poderia ter levado os irmãos para casa.
5 - (Pág.s 176
e 181) Relatório do Padre Manuel Ferreira,
pároco de Fátima – 6/08/1918.
“No dia vinte e um compareceu na minha presença a menina Lúcia e
disse que no dia treze em que foi levada pelo administrador para Vila Nova de
Ourém, e onde esteve, na casa do mesmo
administrador, até ao dia quinze, não viu nada de extraordinário.”
...
“Por várias vezes interroguei a vidente Jacinta que sempre me
confirmou que viu uma Senhora na Cova da Iria, nos dias treze de maio a outubro
de mil novecentos e dezassete, menos no dia treze de agosto em que se achava em casa do administrador...”
6- (Pág. 261) Os acontecimentos de Fátima - opúsculo da
autoria do Visconde de Montelo (Dr. Manuel Nunes Formigão) – 15/01/1923.
“Em 13 de agosto, momentos antes da hora da aparição, as crianças
foram ardilosamente raptadas pelo administrador do concelho, que as reteve em sua casa durante dois dias...”
7- (Pág.s 291
e 303) - Interrogatórios oficiais
realizados pela Comissão Canónica a Manuel
Pedro Marto (a) e
Olímpia de Jesus(b) (pais dos videntes Francisco e Jacinta
Marto), Maria Rosa (mãe da vidente Lúcia), Maria dos Santos e marido, Manuel
António de Paula e José Alves, acerca dos acontecimentos de Fátima –
28/09/1923.
(a) “Mais tarde, quando as veio trazer a Fátima, ... Declarou que
acusavam o regedor e o senhor Prior do rapto das crianças, mas que só ele tinha
a culpa, que podiam perguntar às
crianças, se as tinham tratado mal, e que já não queria saber de nada, que
elas podiam ir ao local, quantas vezes quisessem.”
(b)“Os irmãos de Jacinta foram de bicicleta observar o que se
passava em Ourém e vieram dizer que tinham visto as crianças a brincar na varanda do administrador, que os tratava
bem. O administrador veio trazê-los à Fátima no dia quinze num carro e foi
pô-las na varanda do senhor Prior. ... As crianças mostraram-se como dantes
contentes e prontas para brincar, dizendo que lhes tinham feito muitas
perguntas e que tinha ido um médico examiná-las.”
Comentário:
O Administrador manda perguntar às crianças se as trataram mal?... as crianças
a brincar?... contentes como dantes?...
8- (pág. 318) Interrogatório oficial de Lúcia de Jesus,
realizado pelos Padres Drs. Manuel Nunes Formigão e Manuel Marques dos Santos,
da Comissão Canónica, Porto - 8/07/1924.
“Quando chegámos a Ourém,
fecharam-nos num quarto e disseram que não sairíamos dali enquanto não
declarássemos o segredo que a Senhora nos confiou. No dia seguinte... levaram-nos
à Administração, onde fomos de novo interrogados...
Voltámos para casa do Senhor Administrador, onde tínhamos ficado na noite
anterior e de tarde fomos outra vez interrogados sobre o segredo. Levaram-nos à cadeia, e ameaçaram-nos
de lá ficar, se o não disséssemos.”
Comentário:
É de admitir que para dar carácter oficial à guarda das crianças as mesmas
tenham sido levadas à Administração do Concelho. Sendo a prisão no mesmo
edifício, é provável que as tenham levado à cadeia como forma de coação.
Contudo, “levaram-nos à cadeia” não é o mesmo que dizer “levaram-nos para a
cadeia”. Por outro lado, ao longo das 650
páginas do documento fonte, esta é a única referência ao termo cadeia -
sete anos depois dos acontecimentos, quando a declarante Lúcia já não é nenhuma
criança e já está à guarda num convento no Porto.
9- (pág. 432,
459, 463) Relatório da Comissão
Canónica Diocesana sobre os acontecimentos de Fátima – 13/04/1930.
“O próprio administrador do concelho de Vila Nova de Ourém, que as
interrogou no dia 13 de agosto, e as conduziu presas para sua casa, onde as conservou durante dois dias...”
“Por isso submeteu as
crianças, durante os dias em que as conservou em sua casa, a interrogatórios repetidos...”
“Por esse motivo, no dia em que devia realizar-se a quarta
aparição, como já se disse mais atrás, apodera-se à falsa fé das pobres
crianças e leva-as numa charrette para
sua casa em Vila Nova de Ourém...”
Comentário:
Este relatório marca o ponto de viragem nas versões dos acontecimentos e na adoção
oficial do culto da Senhora de Fátima por parte da hierarquia da Igreja, sendo de destacar como figura central desta
comissão, como na maior parte das redações aqui referidas, o papel do cónego
Formigão, Visconde de Montelo, o grande mentor de Fátima.
10 - Relatório do Administrador do Concelho de Ourém - 31/10/1924.
"...consegui trazê-las para minha casa, junto da minha família, num carro previamente alugado."
Comentário: Fica bem terminar dando a última palavra ao Administrador. Curiosamente este relatório não faz parte da seleção da "Documentação Crítica de Fátima" em que se basearam os itens precedentes mas pode encontrar-se aqui mesmo.
Nota final: Espero ter
deixado prova de que os pastorinhos nunca estiveram presos na cadeia coisa
nenhuma, terá porventura a irmã Lúcia, ou os que por ela escreveram,
introduzido essa referência muitos anos depois, mas quanto a isso paciência, pode
servir para romancear a história mas para a verdade histórica já foi tarde.
2 comentários:
Belo o teu texto esforçado documento que recomendo a todos os crentes e pecadores praticantes e a nós inocentes vergastados
Abraço amigo
Obrigado. Excelente trabalho, em nome da verdade!
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