terça-feira, 21 de março de 2017

Os pastorinhos nunca estiveram presos na cadeia coisa nenhuma!...

Não me incomoda Fátima enquanto questão de Fé, enquanto acontecimento de dimensão política da República ou enquanto história que se desenvolve segundo a premissa de “quem conta um conto aumenta um ponto”. Incomoda-me sim quando, na história escrita pelos vencedores, a deturpação e a fantasia denigrem injustamente o caráter dos vencidos ou nos desconsideram, fazendo-nos passar por tolos.



Porque é mentira que os três protagonistas principais, as três crianças, os três pastorinhos, os três videntes, Lúcia, Jacinta e Francisco, alguma vez tenham estado presos na cadeia; porque em todo este enredo se vão confundido os acontecimentos reais, a ficção e o sobrenatural; porque na evolução das versões, na literatura sobre o tema, no imaginário dos devotos e até no cinema, se foi cimentando o cenário onde as três criancinhas vivem os horrores da prisão, sujeitas à tortura, a ameaças de morte e ao convívio com perigosos criminosos; porque em todo este guião surge sempre, como o “mau da fita”, o administrador de concelho de Ourém, Artur Oliveira Santos, deixo aqui um pequeno contributo para a reabilitação do seu nome e de alguma verdade histórica.

Paralelamente, sendo sensível a testemunhos orais que resistiram às duas ou três gerações que nos separam da época dos acontecimentos,  que asseguram que o pai ou a avó lhes contou lembrar-se de ter visto os pastorinhos na varanda brincando com os filhos do Administrador ou até mesmo na procissão das Festas da Nossa Senhora da Assunção, senti-me incomodado pela rara documentação que denuncia essa mentira, razão única que me levou a fazer este trabalho.

Se ao princípio a pesquisa que se exigia me deixou frustado eis que, por mero acaso ou mão divina, encontrei, duma penada, alimento para a minha intenção – provar que os pastorinhos nunca estiveram na prisão – e, para cúmulo da sorte, numa única fonte, o site oficial do Santuário de Fátima, num único documento, Documentação Crítica de Fátima – Seleção de Documentos (1917-1930).

Não tendo perfil de historiador, limitar-me-ei a transcrever excertos que, na minha opinião, provam que o “mau da fita” levou as crianças para sua casa, de 13 a 15 de agosto de 1917, e não para a prisão, com os propósitos de evitar a “especulação clerical” – expressão do próprio - à volta das mesmas, de averiguar se existiam outros intervenientes por detrás das aparições e de impedir que no dia 13 acontecesse mais uma manifestação de “culto externo” – proibido pela República.

Vamos então ao(s) documento(s), reduzindo as notas ao essencial, muitas vezes apenas as páginas em que constam, na dita Seleção de Documentos, para tornar a dissertação mais concisa.

A apresentação na ordem cronológica pode parecer natural mas não é inocente, tendo em conta o facto da história de Fátima ter estado, desde o início, em evolução permanente, como não será por acaso que a própria seleção em análise demarque o ano 1930, altura que alguns autores assinalam como o início da Segunda História de Fátima.


1- (Pág. 39) Carta do Padre Manuel  Ferreira, pároco de Fátima, ao redator do jornal “O Ouriense”, a defender-se da acusação de cumplicidade com o administrador de Vila Nova de Ourém, no rapto dos videntes no dia 13 de agosto de 1917 – 25/08/1917.

“Chegou no dia 15, a autoridade com as crianças a minha casa, onde se ajuntaram os pais das mesmas e muitas outras pessoas perante as quais pretendeu com todas as amabilidades explicar o seu modo de proceder.”

Comentário: O Administrador foi amável.

2- (Pág. 50) Depoimento do Pe. António dos Santos Alves , pároco das Cortes, sobre a conversa com Lúcia e Jacinta, em Reixida, freguesia das Cortes sobre a sexta aparição – 17/09/1917.

“Neste dia disse-lhe que se elas no dia 13 não tivessem sido levadas pelo administrador, o milagre (para o povo) não teria sido tão conhecido.”

Comentário: É  Nª Senhora, a Própria, que  utiliza o termo “levadas” sem recorrer a outros como “presas” ou “prisão”.

3- (Pág. 51) Interrogatório aos videntes Lúcia, Francisco e Jacinta, e a Maria Rosa, mãe de Lúcia, feito pelo Dr. Manuel Nunes Formigão, aquando da sua segunda visita à Cova da Iria, no intuito de completar as impressões colhidas no dia 13 de setembro de 1917 - 27/09/1917.

“O sr. Administrador quis realmente que eu lhe revelasse o segredo, mas como eu não o podia dizer a ninguém, não lhe disse, apesar de ter insistido muito comigo para esse fim.”

Comentário: A Lúcia fala de” insistência”, não fala de ameaças, nem de caldeirões de azeite, nem de prisão.

4- (Pág. 61Redação literária dos apontamentos dos interrogatórios do dia 11 de outubro de 1917, feitos pelo Dr. Formigão.

“Quando as crianças foram presas pelo administrador de Vila Nova de Ourém foi alguém reclamar que as restituissem aos pais? – Um irmão do Francisco e da Jacinta foi falar com elas a casa do administrador. A senhora do administrador perguntou se ia buscar as crianças, ao que ele respondeu negativamente. O próprio administrador as veio trazer à Fátima.

Comentário: Fica a ideia que o rapaz poderia ter levado os irmãos para casa.

5 - (Pág.s 176 e 181) Relatório do Padre Manuel Ferreira, pároco de Fátima – 6/08/1918.

“No dia vinte e um compareceu na minha presença a menina Lúcia e disse que no dia treze em que foi levada pelo administrador para Vila Nova de Ourém, e onde esteve, na casa do mesmo administrador, até ao dia quinze, não viu nada de extraordinário.”
...
“Por várias vezes interroguei a vidente Jacinta que sempre me confirmou que viu uma Senhora na Cova da Iria, nos dias treze de maio a outubro de mil novecentos e dezassete, menos no dia treze de agosto em que se achava em casa do administrador...”


6- (Pág. 261) Os acontecimentos de Fátima - opúsculo da autoria do Visconde de Montelo (Dr. Manuel Nunes Formigão) – 15/01/1923.

“Em 13 de agosto, momentos antes da hora da aparição, as crianças foram ardilosamente raptadas pelo administrador do concelho, que as reteve em sua casa durante dois dias...”

7- (Pág.s 291 e 303) - Interrogatórios oficiais realizados pela Comissão Canónica a Manuel Pedro Marto (a) e Olímpia de Jesus(b) (pais dos videntes Francisco e Jacinta Marto), Maria Rosa (mãe da vidente Lúcia), Maria dos Santos e marido, Manuel António de Paula e José Alves, acerca dos acontecimentos de Fátima – 28/09/1923.

(a) “Mais tarde, quando as veio trazer a Fátima, ... Declarou que acusavam o regedor e o senhor Prior do rapto das crianças, mas que só ele tinha a culpa, que podiam perguntar às crianças, se as tinham tratado mal, e que já não queria saber de nada, que elas podiam ir ao local, quantas vezes quisessem.”

(b)“Os irmãos de Jacinta foram de bicicleta observar o que se passava em Ourém e vieram dizer que tinham visto as crianças a brincar na varanda do administrador, que os tratava bem. O administrador veio trazê-los à Fátima no dia quinze num carro e foi pô-las na varanda do senhor Prior. ... As crianças mostraram-se como dantes contentes e prontas para brincar, dizendo que lhes tinham feito muitas perguntas e que tinha ido um médico examiná-las.”

Comentário: O Administrador manda perguntar às crianças se as trataram mal?... as crianças a brincar?... contentes como dantes?...

8- (pág. 318) Interrogatório oficial de Lúcia de Jesus, realizado pelos Padres Drs. Manuel Nunes Formigão e Manuel Marques dos Santos, da Comissão Canónica, Porto - 8/07/1924.

“Quando chegámos a Ourém, fecharam-nos num quarto e disseram que não sairíamos dali enquanto não declarássemos o segredo que a Senhora nos confiou. No dia seguinte... levaram-nos à Administração, onde fomos de novo interrogados... Voltámos para casa do Senhor Administrador, onde tínhamos ficado na noite anterior e de tarde fomos outra vez interrogados sobre o segredo. Levaram-nos à cadeia, e ameaçaram-nos de lá ficar, se o não disséssemos.”

Comentário: É de admitir que para dar carácter oficial à guarda das crianças as mesmas tenham sido levadas à Administração do Concelho. Sendo a prisão no mesmo edifício, é provável que as tenham levado à cadeia como forma de coação. Contudo, “levaram-nos à cadeia” não é o mesmo que dizer “levaram-nos para a cadeia”. Por outro lado, ao longo das 650 páginas do documento fonte, esta é a única referência ao termo cadeia - sete anos depois dos acontecimentos, quando a declarante Lúcia já não é nenhuma criança e já está à guarda num convento no Porto.

9- (pág. 432, 459, 463) Relatório da Comissão Canónica Diocesana sobre os acontecimentos de Fátima – 13/04/1930.

“O próprio administrador do concelho de Vila Nova de Ourém, que as interrogou no dia 13 de agosto, e as conduziu presas para sua casa, onde as conservou durante dois dias...”

 “Por isso submeteu as crianças, durante os dias em que as conservou em sua casa, a interrogatórios repetidos...”

“Por esse motivo, no dia em que devia realizar-se a quarta aparição, como já se disse mais atrás, apodera-se à falsa fé das pobres crianças e leva-as numa charrette para sua casa em Vila Nova de Ourém...”

Comentário: Este relatório marca o ponto de viragem nas versões dos acontecimentos e na adoção oficial do culto da Senhora de Fátima por parte da hierarquia da Igreja,  sendo de destacar como figura central desta comissão, como na maior parte das redações aqui referidas, o papel do cónego Formigão, Visconde de Montelo, o grande mentor de Fátima.

10 - Relatório do Administrador do Concelho de Ourém - 31/10/1924.

"...consegui trazê-las para minha casa, junto da minha família, num carro previamente alugado."

Comentário: Fica bem terminar dando a última palavra ao Administrador. Curiosamente este relatório não faz parte da seleção da "Documentação Crítica de Fátima" em que se basearam os itens precedentes mas pode encontrar-se aqui mesmo.


Nota final:  Espero ter deixado prova de que os pastorinhos nunca estiveram presos na cadeia coisa nenhuma, terá porventura a irmã Lúcia, ou os que por ela escreveram, introduzido essa referência muitos anos depois, mas quanto a isso paciência, pode servir para romancear a história mas para a verdade histórica já foi tarde. 

2 comentários:

O Puma disse...

Belo o teu texto esforçado documento que recomendo a todos os crentes e pecadores praticantes e a nós inocentes vergastados
Abraço amigo

Sérgio Ribeiro disse...

Obrigado. Excelente trabalho, em nome da verdade!