sexta-feira, 5 de maio de 2017

O meu pai assistiu ao 13 de outubro, mas não viu nada

Excerto da Entrevista de Sérgio Ribeiro ao Diário de Notícias de hoje, 5/05/2017. 
O único comentário que me autorizo a fazer é: "nas barbas de Fátima".

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Nessa sua infância e juventude aqui, a meia dúzia de quilómetros da Cova da Iria, o fenómeno Fátima era muito presente em toda a gente...ou não?
Não. Eu sinto-o quando vejo passar os peregrinos, claro. Mas veja: eu nunca conversei sobre Fátima com os meus vizinhos. Sei que Fátima tem uma influência muito grande, mas não de forma direta. O meu pai tinha 19 anos e assistiu ao 13 de outubro ["milagre do sol"].

Foi lá, à Cova da Iria?
Sim, foi. O meu pai será o maior responsável pela minha posição em relação a Fátima. É uma versão contraditória da que vingou. O meu pai era comerciante em Lisboa, tinha muitos amigos. Alguns deles nos anos 40 e 50 vinham cá, dormiam cá em casa. Ele não era crente, era agnóstico. Sobretudo anticlerical. Batizou-me, só. Quando eu lhe fazia perguntas, com a curiosidade de miúdo, ele dava-me esta explicação: "Eu fui lá ver o que se passava. E não vi nada! Ou por outra: vi coisas que achei naturais."Até fazia comigo esta experiência (das poucas vezes em que falámos do assunto) - "pega numa imagem qualquer, olha para isto fixamente durante uns minutos, olha para o céu, e vês a imagem refletida".

E foi o que lhe aconteceu?
Sim. Isto no meio de uma massa de gente cria uma ilusão coletiva. Agora chama-se visão, como diz bem numa entrevista recente o D. Carlos Azevedo. Mas isso é contraditório! Como é que se explica que a partir de uma visão se canonize duas crianças? Como é que o D. Carlos Azevedo, por uma questão de rigor de linguagem - para evitar o ridículo - pactua com o ridículo da canonização de duas crianças que foram induzidas a ter visões pela prima mais velha...que era uma visionária.

Mas qual é a sua versão sobre os acontecimentos de Fátima?
Acho que é claríssima a evolução histórica de Fátima. Começou por ser reticente a aceitação da mãe de Lúcia, da Igreja, dos padres. A Igreja não deu aval durante muitos anos. Mas em contrapartida ia comprando terrenos à volta... a tese de Luís Filipe Torgal é claríssima, por ser comprovável. É um estudo histórico e científico. A Igreja ia mantendo as suas dúvidas, teve como grande estratega o padre Manuel Formigão...e numa primeira fase é reticente, muito no registo "se isto der... logo se vê. Se não der, não estamos comprometidos".

Foi próximo do administrador do concelho da época, Artur de Oliveira Santos. Que relação tinha com ele?
Havia uma revista que se publicava em Portugal - Seleções de Reader"s Digest - que tinha uma secção chamada "O meu tipo inesquecível". Se eu tivesse que escolher um tipo inesquecível para mim era o senhor Artur de Oliveira Santos, um amigo excecional. Era um homem de raiz operária. Depois era um homem culto, da propaganda republicana. E era um ativista político. A sua atitude era política.

E foi o administrador do concelho de Ourém naquela altura...
E é um dos grandes responsáveis por Fátima ter vingado. Porque se ele no dia 13 de agosto não tivesse ido buscar os miúdos, talvez as coisas fossem diferentes. Ele foi buscá-los para casa dele, tratou-os exatamente como tratava os filhos, que conheci muito bem. Era um homem excecional de bonomia, de bondade, mas de intervenção. Não fora isso, havia menos um argumento contra a República. Dou-lhe um exemplo: eu miúdo, no final da guerra, já voltado para as questões políticas, fui com o meu pai ao Cinema São Jorge, em Lisboa, ver um filme americano sobre Fátima, em que dão o retrato do Artur como um facínora.

Ainda hoje prevalece um pouco essa imagem...

Ou que é feita prevalecer. Isso é das coisas que me indigna. E é uma das minhas batalhas. Nesse dia, vejo o meu pai levantar-se e a gritar "é mentira!". Isto no tempo do fascismo... na fase política de Fátima. Depois de a Igreja começar a aceitar, Fátima foi muito bem aproveitada pelo Estado Novo, naquele "casamento" Salazar-Cerejeira.
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2 comentários:

Zé Povinho disse...

Cada uma acredita no que quer, e o que lhes vale é que a fé não necessita de ser comprovada...
Eu não creio em aparições e desconfio de visões-
Abraço do Zé

Janita disse...

Excelente! Diz-se que acreditar não 'faz mal', mas fazer da crença do povo, um comércio que rende milhões, já faz mal e muito.

Leio-o sempre e nunca me manifesto, mas hoje resolvi comentar até mais porque essa referência à rubrica que existia nas
Seleções do Reader"s Digest, "O Meu Tipo Inesquecível" era a minha leitura preferida, de então. Ainda tenho um monte dessas revistas, das quais não me desfaço por nada deste mundo.

Acredito piamente e concordo em pleno, com tudo o que acabei de ler nesta entrevista.
Obrigada.