domingo, 9 de julho de 2017

À conversa com o coveiro.


Um coveiro é um homem que não colhe simpatias e é, regra geral, dos homens mais pobres da freguesia. Ele usa um fato sujo onde todos os outros estão de fato domingueiro, ele move a terra enquanto os outros a choram, ele é o que menos ganha e mais trabalha no negócio da morte, ele tem de ser rijo, de olhar esguio e frio. 

A Junta não compra uma máquina porque António Mafra, o Toino, não tem instrução para a manobrar e, por isso, ele continua a abrir as covas à pá e picareta, prestando serviços nos três cemitérios da união de freguesias. Apesar dos seus cinquenta anos, ainda é novo porque vive numa terra de população envelhecida e porque tem muita força. Apesar de haver velhos a dar com um pau também não é todos os dias que morre gente, pelo que Toino dispensa a sua força para outros trabalhos como limpeza de terrenos. Nessas ocasiões, a língua e a expressão dos funerais tranformam-se e soltam-se e ele é outro, conta-me coisas.

Que sabe que lhe pago mas que a outra de Lisboa não o fez e pior que isso:
- Quando a lembrei que me devia da limpeza do quintal dos falecidos, responde-me a puta assim:
- Ó Toino, então não te lembras, paguei-te há uns meses à saída da missa?
- Se me dissesses no café do Costa eu podia já estar com os copos e não me lembrar. Agora à saída da missa? Aí não de certeza porque eu não vou à missa há mais de trinta anos!
- Mas se for preciso eu pago-te outra vez...
- Não! Fica lá com o dinheiro e para a próxima fala a outro!

E outra:
- O padre franciscano que gosta de ver as coisas que o pai lhe deixou muito bem cuidadas falou-me para dar cabo dumas canas. Bem me pus a elas mas tive de falar a um trator para o serviço ficar bem feito. Quando cá veio, perguntou-me quanto era e achou muito:
- Dou só isto e pago-te o resto rezando pela tua alma!
- O cabrão a dizer-me que ia rezar pela minha alma! Então o gajo é muito mais velho do que eu!

- E lembras-te da professora Emília? Tantas que levei dela! E se calhar mereci-as! Aqui há uns tempos veio ter comigo no fim dum enterro.
- Ai Toino, perdoa-me que eu bati-te tanto!...
- Só vejo uma explicação para o arrependimento lhe ter vindo naquela altura. Ela ouviu as pazadas de terra a cair sobre as tábuas do caixão: trum! trum! trum!... trum! trum! trum... e lá deve ter pensado que não tarda é a vez dela e quer que eu seja mais doce.

Isto, para não falar de outras de morte que o seu humor negro solta e que me faz dizer-lhe à moda da canção:
- O coveiro não tem culpa é a sua profissão.



6 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Eis um profissão
que não gostaria de ter
pela simples razão
de por vezes me parecer,
Que há mortos que parecem mais vivos
que certos vivos que parecem já falecidos

É não é que são muitos?

cid simoes disse...

Há que fazer a destrinça entre falecidos e o lixo que é necessário enterrar por uma questão de sanidade pública.

O Puma disse...

Os coveiros também neste país
exercitam-se nas urnas

José Lopes disse...

A sua utilidade é indiscutível, mas não é uma profissão desejada.
Cumps

Maria disse...

Só este meu amigo que torna ouro tudo em que deixa o seu toque tão pessoal para escrever sobre este tema e ser lido.

maceta disse...

King:

do que mais gosto é do teu estilo rústico. Mas, tem sabedoria, tem sim senhor... quanto ao coveiro, ele é que os enterra...

abraço