Um coveiro é um homem que não colhe simpatias e é, regra geral, dos homens mais pobres da freguesia. Ele usa um fato sujo onde todos os outros estão de fato domingueiro, ele move a terra enquanto os outros a choram, ele é o que menos ganha e mais trabalha no negócio da morte, ele tem de ser rijo, de olhar esguio e frio.
A Junta não compra uma máquina porque António Mafra, o Toino, não tem instrução para a manobrar e, por isso, ele continua a abrir as covas à pá e picareta, prestando serviços nos três cemitérios da união de freguesias. Apesar dos seus cinquenta anos, ainda é novo porque vive numa terra de população envelhecida e porque tem muita força. Apesar de haver velhos a dar com um pau também não é todos os dias que morre gente, pelo que Toino dispensa a sua força para outros trabalhos como limpeza de terrenos. Nessas ocasiões, a língua e a expressão dos funerais tranformam-se e soltam-se e ele é outro, conta-me coisas.
Que sabe que lhe pago mas que a outra de Lisboa não o fez e pior que isso:
- Quando a lembrei que me devia da limpeza do quintal dos falecidos, responde-me a puta assim:
- Ó Toino, então não te lembras, paguei-te há uns meses à saída da missa?
- Se me dissesses no café do Costa eu podia já estar com os copos e não me lembrar. Agora à saída da missa? Aí não de certeza porque eu não vou à missa há mais de trinta anos!
- Mas se for preciso eu pago-te outra vez...
- Não! Fica lá com o dinheiro e para a próxima fala a outro!
E outra:
- O padre franciscano que gosta de ver as coisas que o pai lhe deixou muito bem cuidadas falou-me para dar cabo dumas canas. Bem me pus a elas mas tive de falar a um trator para o serviço ficar bem feito. Quando cá veio, perguntou-me quanto era e achou muito:
- Dou só isto e pago-te o resto rezando pela tua alma!
- O cabrão a dizer-me que ia rezar pela minha alma! Então o gajo é muito mais velho do que eu!
- E lembras-te da professora Emília? Tantas que levei dela! E se calhar mereci-as! Aqui há uns tempos veio ter comigo no fim dum enterro.
- Ai Toino, perdoa-me que eu bati-te tanto!...
- Só vejo uma explicação para o arrependimento lhe ter vindo naquela altura. Ela ouviu as pazadas de terra a cair sobre as tábuas do caixão: trum! trum! trum!... trum! trum! trum... e lá deve ter pensado que não tarda é a vez dela e quer que eu seja mais doce.
Isto, para não falar de outras de morte que o seu humor negro solta e que me faz dizer-lhe à moda da canção:
- O coveiro não tem culpa é a sua profissão.
6 comentários:
Eis um profissão
que não gostaria de ter
pela simples razão
de por vezes me parecer,
Que há mortos que parecem mais vivos
que certos vivos que parecem já falecidos
É não é que são muitos?
Há que fazer a destrinça entre falecidos e o lixo que é necessário enterrar por uma questão de sanidade pública.
Os coveiros também neste país
exercitam-se nas urnas
A sua utilidade é indiscutível, mas não é uma profissão desejada.
Cumps
Só este meu amigo que torna ouro tudo em que deixa o seu toque tão pessoal para escrever sobre este tema e ser lido.
King:
do que mais gosto é do teu estilo rústico. Mas, tem sabedoria, tem sim senhor... quanto ao coveiro, ele é que os enterra...
abraço
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