sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Nos cornos e na pele do touro


Doze quilómetros por maus caminhos de terra batida, entre pinhais, lugares, vinhas e milheirais, o homem ao guião, a mulher pendura na traseira do selim da motorizada, sentada de lado por impedimento da saia justa ao joelho, a criança, essa sim escarrapachada, sobre o depósito da gasolina. Fomos à Praça de Toiros de Abiul à primeira e última tourada a que assisti, ao vivo, na vida.

Trouxe de lá a primeira resposta à questão do que queres ser quando fores grande (?), moço forcado, pois claro e, douto na lide pela experiência, comecei a liderar as pegas ao carneiro grande quando ia guardar as ovelhas com os meus primos. 
Também, no recreio da escola, brincávamos às touradas. Aí, rodavam todos por todos os papéis. O que fazia de touro tinha de rodar o cinto de modo a que a fivela e a ponta ficassem na parte das costas para fazer o rabo. Fazia-se a pega como mandam as regras e, na parte do toureio, as garrochas eram as espigas duma erva daninha que se pegavam às camisolas de lã. Eu era bom na pega, no rabo, como cavaleiro, como touro ou como cavalo.

Quando, já jovem, fui a uma garraiada, diverti-me do lado de fora, dono de juízo para não me pôr nos cornos do touro. Ponho-me agora na pele dele.

"É pá! Porque é que estes humanos, que tratam de mim todos os dias, me carregaram agora para  cima desta camioneta? Porventura vão levar-me para outras pastagens. Estou a gostar do passeio. Mas, espera aí, desapareceram os campos, isto para aqui é só casario! Olha, querem que eu desça! Mas para quê, se aqui não vejo erva que se coma? Pronto, querem que eu vá por este corredor além? Vocês é que mandam! Se querem, eu vou! É lá! Tanta algazarra! Nunca vi um espaço assim sem verde! Pasto também não vejo! Ena pá tanta gente! E se gritam! Será para mim? Deve ser, sinto-me o centro. Olha aquele ali com um pano vermelho! Está a meter-se comigo! Vou correr para ele! Cobarde, fugiu! Outra vez? Anda cá que eu te digo! Na verdade até estou a gostar da brincadeira! E parece-me que todos estes humanos que aqui estão à volta também estão a gostar! Venham, venham todos brincar para a areia, vamos fazer uma festa! Até que enfim que vejo um cavalo! Vou ter com ele! Corro atrás dele! Estou a divertir-me tanto! Ai! Então? O tipo bem cheiroso que ia em cima dele espetou-me qualquer coisa nas costas!? Este tipo merece uma cornada nas pernas! Ai vai levá-las, vai! Não fujas cavalo que eu não te aleijo! Eu quero é apanhar esse empertigado que te cavalga! Ai! Outra? Agora doeu! Desta vez não me escapas! Gaita! Estou cansado! Mas o homem insiste em desafiar-me? Vou lá outra vez? Não vou? Não, que ainda me espeta outra no lombo! Mas o gajo está mesmo a pedi-las! Vou! Não fujas! Este cavalo tem cá uma corrida e faz cá umas fintas! Mas o que eu gostava mesmo era de apanhar uma perna do teu cavaleiro! Ai! Ai! Ai! Outra! Estou a sangrar! Este tipo quer matar-me! Desisto? Não sei que faça! Não confio mais em seres racionais! Vejo-os tão contentes! E o gajo bem vestido que me feriu? Todo ele é cagança! Vão embora? Vão embora vão! Eu também ia, mas não vejo forma de sair daqui! Outra vez o pequenote da capa vermelha. Quer festa? Tenho dores. Agora já não me apetece! Não insistas pá! Pronto já vi, queres uma cornada? Vai, vai, vai, ai que te safaste por pouco. E pronto, não vejo saída! Olha-me agora uma manada deles! Que será que estes querem? Olha que vocês não têm cavalos para fugir de mim! Se vêm por bem deixem-se estar! Olhem que eu já não estou para festas! Estão a chamar-me? Querem tourada chamem os vossos pais! Olhem que eu vou! Vou! Ah! Assim eu gosto! Estão a abraçar-me! Cuidado que eu ainda piso algum! Então? Vão embora? Então e tu? Que é que ficaste aí a fazer agarrado ao meu rabo? Gostas de rabos? Porra, já estou farto de andar à volta! Larga lá isso que eu não corro atrás de ti! Estou é com umas dores do caraças! Estou a ver bem? Gaita! Nunca vi tanta vaca! Agora que estou ferido é que mas trazem? Até que enfim que vejo campinos! Finalmente entre amigos! Querem levar-me convosco? Eu vou! Mas vocês não sabem é as dores com que estou! O melhor será mesmo matarem-me. Não me admira nada que seja para isso que me levam! Adeus humanos! Sei que nasci para morrer mas vocês também não escapam!"

Digamos, portanto, que até podíamos, inclusive os touros, divertirmo-nos muito com as touradas. A crueldade dos que espetam por prazer é que é demais. Porque é que não fazem como na esgrima ou no paintball onde ninguém se aleija? É que toda esta polémica das touradas em que, de um lado estão os que gostam dos touros e lhes espetam ferros, do outro estão os que gostam de touros mas nunca deram uma palha a nenhum, começa a ser ela própria uma tourada em que o touro é o cidadão comum. 

Dizem uns: se deixarmos de comer frango de aviário, acabam os frangos de aviário e os aviários. 
Dizem outros: não faço mal a uma mosca e gosto muito de bife de boi preto mal passado.
Haja paciência!
Animal nunca! Porco sempre! 



4 comentários:

Maria disse...

Apoiado!
E os peixes ? Esqueceu Vª Majestade dos peixes. Não só os frangos os sacrificados…

Um beijinho sempre amigo.

Maria

Manuel Veiga disse...

"eh, toiro lindo!..."

isto sou eu a dizer a passar a mão pelo lombo do toiro cobridor
depois de vencer o rival na última "chega de toiros"

e logo de seguida ter "lançado" três vitelas de estimação
(uma branquinha, outra loira e outra morena)

e saia o bife! de preferência da alcatra...

Haja saúde, Majestade

zambujal disse...

... as questões fracturantes! Para facturar.
Pegas-lhe muito bem. De cernelha... mas de caras.
Aplausos, Rei

O Puma disse...

Touradas?
Enquanto o povo suportar as farpas
Abraço