quarta-feira, 6 de março de 2019

Há homens que não tem jeito nenhum para as mulheres

Se eu fosse mulher não queria um dia, preferia um porco.

Em 1953 todos aqueles vales estavam rodeados de floresta, todas as propriedades eram limitadas por regatos, todos os campos eram cultivados. Nas imediações dos milheirais existiam sempre represas rodeadas de salgueiros, carvalhos e outros arvoredos. Era para aí que as mães mandavam os filhos brincar à hora do calor. Mesmo quando estes começavam a ganhar corpo para agarrar na enxada, naquela idade em que não se é uma coisa nem outra, ao fim duma leira de canseira, haveria sempre uma voz com mais poderes que mandava:
 - Vão lá agora brincar um bocadito!

Foi no cumprimento duma dessas ordens que os dois se viram a sós num daqueles recantos sombrios onde sempre brincaram. Passou a concha da mão pela água da represa e atirou sobre o corpo que começava a ser outro.
- Ai! Molhaste-me a mama!
- Molhei!? Ora mostra!

Abriu a blusa lentamente e exibiu com legítima vaidade só uma das duas. Não adianta descrever o que foi visto, toda a gente já viu! Enfim, a perfeição como ela se revela no corpo de qualquer rapariga, salvaguardando que a perfeição é sempre relativa e que não interessa aqui particularizar esse conceito aos olhos de quem viu. Aquela visão, aquele seio, vi-lo-ia a perseguir em toda a vida.

Quando, já barbado, deu pelo pai fugido para o Brasil, a irmã mais velha a dar lareira a um homem casado e a mãe, conformada, agarrada a todas as alfaias, determinou-se a dar caminho ao sonho e emigrou para a Austrália. Veio duas vezes curtas, a última em 78, visitar a mãe mas, por vergonha, medo, mania ou por acaso, não se encontrou com a irmã nem correu o povoado a rever velhas relações.

Voltava agora com 74 anos, com duas malas, num táxi que tacteou lentamente a estrada asfaltada coberta de folhedos, entre silvados e a paisagem cruel dos campos ao abandono: a primeira casa do vale, abandonada, depois, frente a frente, duas com poucos sinais de vida, mais à frente ”uma casa estilo maison com janelas à la fenetre”, residência de férias pela aparência, um pouco mais adiante uma outra em ruínas e, ao fundo, a casa do seu destino.
- Foi aqui que eu nasci!
- Não me diga que vai ficar aqui?!
Anotou o número de telefone do taxista e despediu-se. Olhou, apreciou, sentiu saudade, alegria, tristeza, reviveu. À parte as ervas, as silvas e as teias, tudo deveria estar como a sua mãe deixou quando morreu, fazia poucos anos.
A irmã, que pelo remetente da carta fazia vida lá para o norte, reclamara a sua presença para arrumar partilhas. Ele poderia até ficar definitivamente. Em terras de poucas mulheres havia feito vida apenas com mulheres da vida - diga-se que vira muitos mas nunca mais vira um igual ao da represa - não fizera família e bem que, como homem livre e aventureiro, lhe poderia dar para viver ali o resto dos seus dias.
Perguntava a si próprio o que ganhara em sair dali. Poderia pagar a sua longa ausência à memória da sua mãe, voltando a cultivar os campos, reconstruindo a casa e os anexos, restaurando ferramentas e utensílios – afinal de contas, em tudo o que via, sentia a presença e a energia dela.

Deu volta ao pátio e à casa e arrombou a porta apodrecida. Foi duro entrar, foi duro olhar cada prateleira, cada objecto e a lareira ainda com as cinzas da última fogueira. Já esperava não encontrar condições para pernoitar. Precavera-se com equipamento de campista para os primeiros dias. Antes de dar mais tempo a recordações, a projectos e trabalhos de limpeza teria de arranjar terreiro e montar a tenda. Estava agachado na preparação das estacas quando ouviu um carro de mão.
Aproximou-se. Depois dos primeiros instantes de reconhecimento, surpreenderam-se mutuamente. Cumprimentaram-se. Fizeram a conversa da ocasião. Estou eu, viúva, e a minha cunhada mas lá em baixo no lugar ainda vive muita gente!
- Por aqui passam-se os dias, as horas não. Ao menos hoje vai lá comer a casa. Alguma sopa se há-de arranjar!

Durante a ceia as duas mulheres não pararam de contar e fazer perguntas. Acabariam por ficar só os dois na despedida e, ao levantar-se, o evitável aconteceu: um copo de água despejou-se na blusa negra de Rosalina.
- Mostra-me a outra!
- Júlio!!!
Para quem nunca teve jeito para abordar mulheres, teria sido apenas mais um estalo. Aconteceu que o mesmo não criou desculpas, nem ressentimentos mas apenas uns pares de gargalhadas, sinal que ambos ainda estavam a tempo de poder começar. Quando se dirigiu à porta e olhou para trás para dizer boa noite, viu exibir-se a blusa entreaberta e sentiu de novo a juventude.
- Ainda bem que não me pediste para te mostrar a mesma!
Joaquina já devia estar a dormir. Mesmo que espreitasse pela janela nunca iria acreditar no que veria, os dois num beijo.
- Não te desejo pela perfeição, o teu sorriso é e será sempre belo nem que te caiam os dentes!

1 comentário:

Manuel Veiga disse...

há bácaros assim, molham um dia a "coisica" duma mulher. e fica molhada pela vida fora!
felizardos!

um texto invejável, Majestade.

abraço