quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O vale tudo

 Aqui neste vale sem nome onde o rio só corre quando chove, de onde se vê ao longe um povoado grande que é aldeia e mais perto um sítio com capela e dez ou doze casas e, de resto, a vista se enche com olivais, vinhas e pinheiras - aqui vivo.

Aqui há campo, ovelhas, gatos sem dono, cães vadios, milharolas, popas, cobras, as uvas pisadas com os pés, água pé e azeite sem rótulos, a omnipresente tratorinha do Tó Zé sempre a assapar e a conversa por entre um tinto de descanso:
o tempo, por quem dobraram os bombeiros, de que família era o falecido, porque não deram os tomates este ano, o pó ideal para o corcomilho e "o que eles querem agora"…
Querem que o Tó Zé tire um curso para ter uma carteira que o habilite a tratar do gado de que sempre tratou desde criança! Querem que ele diga onde põe o estrume dos animais!
- Na terra! Ora que porra! Onde é que eu o havia de pôr?!

Para isto ser verdadeiramente campo inteiro só falta um burro. Ando a pensar em criar condições para ter um burro, espero que não seja necessária carta para o montar, toda a família está de acordo, um burro comporia muito as nossas vidas! Se não houver maneira de levar o projecto por diante - sim, porque até já para ter um burro é preciso um projecto! - nem que faça eu de burro para completar a harmonia!
E o Tó Zé a malandrar:
- Mas tu não és porco lá na "internete" ou lá o que isso é!? Afinal agora queres ser burro!?
O Tó Zé não me trata como um animal, não me diz: asta pra lá, tens fome, estragaste a palha toda, estás triste, falta-te o macho e outras longas conversas que ele trava com o gado. Fala assim para mim, por amizade e porque me acha estranho.
- Já chega por hoje Zé, nem mais um, não bebo mais, sinto-me estranho! Vou estranhar!...

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