As aldeias desaguam nas ribeiras. Nas margens dos campos das ribeiras ficam os casais dos dois ou três mais abastados das aldeias.
Constantino é um desses dois ou três na sua aldeia, tem parcelas por tudo o que
é ribeira, monte ou charneca, de modo que se diz, na aldeia, que não há quem
não tenha um talho, pinhal ou olival que não confronte com ele com dois marcos.
Naquela aldeia, em mil novecentos e sessenta e dois, Constantino é
o último homem que ainda usa barrete, que tem duas juntas, mula e burro e que
vive exclusivamente da terra. Ainda assim, apesar da fartura, quando a mulher
faleceu, em mil novecentos e quarenta e cinco, os filhos migraram para Lisboa.
Constantino não teve outro remédio senão casar-se com uma das
criadas, a mais lerda, surda que nem uma porta que, talvez por assim ser, ou
por adiantada idade, ou por consanguinidade de filhos incógnitos de
antepassados, não lhe deu filhos sãos como os primeiros. Os três saíram
com defeito de mentalidade. Mas pronto, ele polegar, a mulher mindinha, a
família acabou por funcionar como os dedos duma mão.
Por desgosto, coincidência ou por capricho, Constantino foi a
enterrar no mesmo dia de António de Oliveira Salazar, deixando os três faltados
aos cuidados da também já faltada e cada vez mais mouca, segunda mulher.
Justina, a mais velha, falava, falava, falava se Deus a dava, falava de mais, falava a toda a gente das coisas que se passavam em casa, fazia correio da aldeia e até falava das suas menstruações. Dava-se de tal modo ao desrespeito que os rapazes rudes, que a cruzavam, a demandavam a respeito:
- Justina mostra-me a tua crica! Justina, fdes? Justina para que queres a crica se não fdes?
Cristiano, o do meio, era pacato, mas tinha desembaraço para tratar do gado e de toda a lavoura, nada que o livrasse da troça das gentes rudes de que era parte: provocavam-no acerca da coisa da irmã, tentavam embebedá-lo sem sucesso e, quando num grupo, a sua boina andava sempre de mão em mão.
Francisco, o mais novo, aprendera a ler e a escrever. A loucura só o apoderou já adolescente, talvez por consciência tomada do lar em que nascera, talvez por atos da mãe, talvez por maldição hereditária, o que é certo é que, diferentemente dos irmãos, com ele não se brincava, era violento, rangia dentes e não ria, lia o jornal e depois rasgava-o, não permitia que o atentassem com balolas.
Um dia,
zangando-se com o Cristiano no meio duma lavoura, deu-lhe com a vara da arrelhada num sobrolho, destinando-o ao hospital. A vizinhança deu
asas à sua crueldade e, de sua justiça, amarrou-o durante horas, de
cabeça para baixo, a uma oliveira centenária.
(A minha mãe levava-me pela mão, íamos a passar, não teve tempo para me ocultar a tortura, o cenário ficou-me gravado para sempre e nunca mais fui o mesmo. Ainda bem que vi. Não se deve esconder tudo das crianças.)
Familiares de Francisco, Justina e Cristiano, acabaram por
hospedá-los na terra alheia em que residiam e, mais tarde, entregaram-nos a uma
Instituição Particular de Solidariedade Social. Tentaram vender a herança dos
campos da ribeira, dos pinhais e olivais mas não apareceram compradores.
Nunca
mais ninguém, na aldeia, viu os três irmãos e os três irmãos também nunca mais
viram a aldeia. Terão morrido sem o conhecimento da aldeia embora se conste que
terão morrido os três antes do Natal.
Isto já
não há aldeias como antigamente, onde a gente podia nascer atravessado, viver
assim assado e morrer descansado. Há sempre um hospedeiro, um hospital ou um
hospício que nos irá manchar a harmonia do último Natal. É certo, se a
morte é certa, isto não acabará bem para ninguém.
5 comentários:
Sabe, P.N.? Não gostei na história.
É triste, deixa-nos macambúzios e no fundo, no fundo, não conta história alguma.
Gosto mais quando conta coisas dos seus carnavais, das conquistas, dos engates e outras coisas que tais.
Bom fim de semana.
Sabe Janita, os leitores a quem dirigi esta história sem história, são na verdade os meus amigos da aldeia onde nasci e que me seguem no facebook. Eles não apreciam muito a ficção e quando me encontram começam por me chamar mentiroso. Mas ao mesmo tempo, agradecem-me por desenterrar personagens que povoaram a sua infância e juventude. É essa a razão de algumas histórias que escrevo. O blogue, serve apenas para tentar que fique o registo futuro das coisas que escrevo. O mais certo é que isto se apague tudo com uma pandemia informática mas fica a intenção. De qualquer forma, obrigado por este e outros comentários que por aqui tem deixado. Confesso que até me intriga como descobriu esta discreta pocilga mas claro que me agradam sempre os sinais de que está alguém do outro lado.
Bom fim de semana.
Desculpe, se o magoei ou melindrei P.N., mas sabe? Talvez, erradamente, associei a História anexada às etiquetas como estórias de ficção. Soubesse eu que eram verdadeiras e retratavam vidas reais da localidade onde nasceu, jamais teria sido tão deselegante, como agora me parece ter sido. Acredite que me sinto mesmo mal. Peço desculpa.
Conheço estes personagens, sem nunca os ter conhecido
Conheço essa aldeia, sem nunca lá ter ido
Espicaças-te-me a curiosidade, escreve num livro
Ah, e já agora desculpa a Janita.
Fartei-me de rir com a historieta! E com a menção da crica também! Não há muita gente que a conheça por esse nome!!!
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