sexta-feira, 19 de abril de 2024

Tratem-me da saúde

A minha carteira tem cartão de condução, cartão do contribuinte,  cartão de eleitor, cartão do cidadão,  cartão de residente, cartão do banco, cartão de desconto, cartão de cliente, cartão de ponto, cartão de juventude, cartão do sindicato, cartão da associação, cartão do clube, cartão de utente, cartão de saúde!...

Enfim, sou tanta coisa e a minha identidade esta a rejeitar todos os cartões.

Sei bem onde tenho a carteira, desta vez não a perdi, ela é que me perdeu. Procuro-me e não me encontro! Já corri a estante, o quintal, os montes e vales das redondezas, a casa da Mariquinhas e, nada, não há sinais de mim! Se por acaso alguém encontrar um indivíduo com cara de mau e despenteado, desnorteado e sem centro, com ar desempregado, com carteira, sem cartões, sem saúde mental e sem dinheiro, devo ser eu. Nesse caso, é favor contactar-me através do número de telefone: 249001974.

Sem saber do meu paradeiro, dirigi-me ao Centro de Saúde. Achei muito estranho, estava tudo mudado, o balcão de atendimento, outros funcionários, etiquetas com preços por todo o lado... e atendeu-me uma senhora com um estranho soutien.

- Olhe minha senhora, eu concordo inteiramente com o princípio do utilizador-pagador, se você fumou e contraiu cancro, se comeu muito toucinho e teve um à você, se andava na azeitona e caiu de uma oliveira, porque diabo hão de os saudáveis pagar os seus descuidos!?  Um país não pode hipotecar a sua economia na prestação de serviços de saúde a quem não se cuida ou no prolongamento da vida de quem já nada pode dar à sociedade! Mas o meu caso é diferente, eu não estou doente por culpa própria! Foram os governos e as suas sociedades anónimas que me trataram da saúde e da identidade! Agora exijo que me informem do meu paradeiro, que me localizem, que identifiquem a minha situação, que me deixem viver sem cartões e que me atribuam um subsídio para a substituição das fitas coloridas do guiador da minha bicicleta!

- O sinhô é uma meda! Não pechebe nada! Isto  já não é um centlo de saúde! É uma loja de chineses!

- Ah é!? Se eu sou uma meda porque é que me comem todos os dias!? Querem cartões?!Querem identidades?! Para mim não existem chineses, nem pretos, nem brancos, nem teslas, nem bicicletas! Existem apenas porcos e suinicultores!

E, dito isto, num impulso de rara lucidez, peguei num monte de cartões de embalagens que estavam atados à entrada do edifício e fugi com eles em cima do guiador da minha bicicleta.

Já estou melhor, vendi os cartões, fiz algum dinheiro e pu-lo na carteira. Recuperei a identidade e a sanidade. Peço desculpa pela banalidade do texto, termina aqui. Tenho mais que fazer, vou às bombas beber um café, comprar tabaco e abastecer a bicicleta.

(Quem nunca viu um porco a andar de bicicleta?)


2 comentários:

JANITA disse...

Vá até à Bairrada que eles lá tratam-lhe da saúde...

Maria João Brito de Sousa disse...

Caramba! E não é que acabo de ver um?!

Tive de ampliar a imagem que estes olhos nem com as cirurgias voltaram a ser o que eram, mas agora vi-o claramente visto...


Se não for à Bairrada, experimente ir à Mealhada, digo eu do mais fundo da inocência que há muito perdi.