sexta-feira, 14 de junho de 2024

Terra-mãe

Ontem visitei a minha mãe. Já não é a mesma que conheci quando eu crescia. O alpendre da avó foi com um vento, a eira do tio foi com uma enxurrada, da casa do bisavô não resta nada. E foi morrendo cada geração e ela ficou ali rapando o sol e mastigando o frio. Podia ser pior. Passa um trator com corta-mato e o tratorista acena a tudo o que mexe. A Sagrada Família ainda vai de casa em casa. Podia ser pior!... O doutor de letras restaurou a casa que herdou do pai. Isto vai! Digo que sim, respeitando quem o diz mas a minha mãe não tem a mesma alegria. Os filhos tiveram mais partidas que regressos. Vêm ver uns marcos e dar algum dinheiro para o andor. Deus Nosso Senhor lá sabe. A minha mãe tem a flor da pele marcada pela ausência das sombras das árvores que os incêndios levaram. A minha mãe tem os cabelos despenteados pelo fim dos arados que os tempos levaram. Já só a visito por ser mãe e folgo em saber que ela está para durar nem que seja só para enterrar os que vão morrendo. Outros destinos traíram-lhe o destino.

É claro que falo da minha terra-mãe que a do ventre já se foi e não viu isto. 

Dizia eu, em tempos, que quem perde as suas raízes, seca. Pois então falei a uma retro e a um camião e trouxe uma carrada de terra lá da terra e fiz um canteiro no meu quintal. Agora estou melhor! Tudo o resto são saudades e remorsos.
Eu devia ter sido pastor ou lavrador como os avós.
Mas não! Fui no engodo de que estudar é que era! Com a certeza de merda que qualquer cidade me daria mais. E olha agora, a minha terra-mãe a morrer e eu longe dela!

Toda a província padece deste mal. É bem feito em quem parte e em quem fica dizendo:
- O meu está muito bem, vive em Aveiro!
- O meu lá está para França e lá fez vida! 
- O meu neto está um homem, foi pró Dubai!
- A minha filha está tão contente desde que o filho arranjou emprego na Inglaterra!

Nas aldeias ninguém cria os filhos com projetos para que eles venham a viver nelas. Uma terra com os campos ao abandono não tem futuro. Um país que abandona as suas aldeias não tem futuro. Um Estado que fecha tudo o que é serviço público nas aldeias, não é um Estado é um bananal! Os pobres que ficaram nas aldeias a carpir por Salazar são bananas! ...Eu não sou nêspera!




6 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Gostava de ter sido eu a escrever um texto assim...

Abraço

Janita disse...


Sinto o mesmo pela minha Terra-Mãe, não saberia era descrever tão bem o meu apego e o sentimento de pertença que me invade a alma, sempre que a visito.
Muito lindo e extremamente emotivo este seu texto, caro Para Negra.

Quando o li a 1ª vez, há pouco, ainda não era nêspera...😁
Eu também não me dou parada porque não gostaria de ser comida por uma velha...😊

Tintinaine disse...

Eu também tenho visitado muito a minha, é coisa de velhos com saudades da juventude!

JANITA disse...


A quem não souber, ou não se lembrar, do que eu quis dizer quando falei o que falei, ali em cima, deixo o grande Mário Viegas e a sua nêspera:

https://www.youtube.com/watch?v=ilrjg5zOQa0

😊

Pata Negra disse...

Obrigado Janita. Sim, quando falei da nêspera, era nessa nêspera que estava a pensar. E, por mau feitio, marimbei-me para o entendimento de quem vier a ler e não conhecer. Seja o que for que entendam o que é preciso é que entendam alguma coisa! Também é bom se não entenderem nada.
Obrigado pela assiduidade dos seus comentários. Como já deve ter percebido não me dou muito aos comentários, anda aqui só por andar. Aliás, como na vida.
Bjs.

Maria João Brito de Sousa disse...

Eu, que continuo a viver no Concelho em que nasci, também gostaria muitíssimo de ter sido capaz de escrever um texto semelhante a este, caramba! Não é fácil encontrarem-se por aqui textos com esta qualidade literária. E humana.