sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Explosão de varões

Os quartos da bateria de instrução tinham dez camas. Calhou-me por sorte de especialidade o último quarto onde sobravam sete camas vazias. Os outros dois recrutas não tinham formação superior e eram uns anos mais novos pelo que quem mandava no quarto oito era eu. De todos os restantes quartos vinham os rapazes de mais excessos, fumar, beber e comer de tudo e mais alguma coisa.

Um dia o meu amigo Cavalheiro, também companheiro de excessos de Coimbra, convidou-me para ir ver como era o quarto dele às dez da noite: um escrevia à namorada, outro lia a Gina, outro regressava da retrete, outro tinha a cabeça enfiada debaixo das mantas, outro engraxava as botas, outro comia bolachas, um estava apático e dois discutiam futebol.  A nossa entrada rompeu o ambiente e impôs-se pelo canto:

“Acorde sr prior! Acorde sr prior!

Acorde não durma tanto!

Nós já vimos da igreja! Nós já vimos da igreja!

Vamos para os Esprito Santo!”

Quando, à medida que entrámos na cantiga, começámos a bater com as mãos o ritmo nos armários, não esperávamos uma reação tão rápida dos camaradas. No espaço de alguns segundos, todos batiam o ritmo no que tinham à mão e cantavam com voz de soldados a inocente canção. Atrás da barulheira vieram de outros quartos, outros fazer coro e alinhar no forrobodó.

Todos já experimentámos momentos destes na vida em que inesperadamente se verifica uma explosão coletiva de franca alegria, aparentemente sem razão maior. São oportunidades raras em que uns se tornam atores e outros deixam de sê-lo, em que toda a gente exterioriza, participa, sem inibições, com satisfação plena e plena consciência que está a viver um momento único e inesquecível.

Estas manifestações não são completamente espontâneas, há sempre um ou mais provocadores que as fazem acontecer, seja num encontro, numa festa ou mesmo numa revolução.

É um momento destes que este pequeno filme documenta. E se há filme, não há necessidade de escrever, não precisareis de muitas palavras minhas para o interpretar, para o viver e para rir. 


(Vivi esta explosão no jantar do dia 1 de janeiro de 1992. A noite da Passagem de Ano tinha sido dura, não havia outra maneira de continuar a noite seguinte. Evitam de me procurar entre os convivas porque sou eu que estou a filmar)

2 comentários:

Janita disse...

Forrobodó só com homens não é mau
mas que diabo -
um varão sem namorada
não tem piada nenhuma,
mas sempre é melhor que nada! 😅

Felizmente regressou à vida, caro Monarca. 👏

Rogério G.V. Pereira disse...

No céu cinzento
sob o astro mudo
eu só convivi
em ambiente sisudo

Essas explosões passaram-me sem pre ao lado