Troçava ela deveras irritada pela forma como o marido se descaiu em plena cidade. De vez em quando olhavam para trás para confirmar que o homem não vinha no seu encalço.
Quando finalmente encontraram o edifício, demoraram um momento
a ganhar coragem para entrar. A mulher empurrou o marido para a frente. O homem limpou as mãos às calças, respirou fundo e avançou.
A funcionária que os atendeu olhou para eles com um meio sorriso condescendente. Certamente estava habituada a receber pessoas como eles — sonhadores, crédulos, gente simples que vinha confirmar se um conjunto de números lhes tinha realmente mudado a vida. Não raras vezes haveria confusão, um número mal lido, uma troca de concursos, um chico esperto… Não era contudo o caso, Francisca tinha tudo mais que confirmado. Se houvesse um “não” era porque tudo aquilo não passava duma grande vigarice.
Quando atabalhoadamente conseguiram dizer ao que vinham, foram
encaminhados, com extrema simpatia, para uma sala com uma mesa ao centro.
Foi-lhes dito para aguardarem, que já viria alguém para os atender. Os minutos
que se seguiram pareceram ter centenas de segundos. Olharam as paredes, o teto,
o chão, os quadros, um para outro, para as mãos, para a porta… até que
finalmente entrou um senhor alto e bem vestido e uma senhora baixa e bem
vestida. Cheios de nove horas começaram a cantar uma conversa que pelo conteúdo
e pelo tom, já teriam cantado muitas vezes.
Seguidamente: nomes;“o vosso bilhete?”; confirmação; os muitos parabéns; felicidades; vamos ter de fazer isto e aquilo; vamos começar por….
Francisca, ouvia de braços cruzados e olhos arregalados. Jacinto
inclinava o tronco sobre a mesa como se isso lhe permitisse mais atenção ao que
era dito, sentia o sangue a faltar-lhe na cabeça, sentia-se tonto, aéreo, era
difícil aterrar naquela realidade, valia-lhe a força de Francisca que, quase
encostada a ele, de vez enquando lhe apertava o braço.
O cenário, a situação, o tom profissional dos funcionários com
vocabulário da cidade impediam
que se sentissem à vontade e, escusado será dizer, que ainda não havia tempo para se estabelecer a relação desigual que habitualmente os muito mais ricos, eles, tem com os muito mais pobres, os bem vestidos que estavam à sua frente a debitar discurso. Afinal de contas, em termos relativos, sabemos que até há poucos dias as coisas eram exatamente ao contrário: aquela mulher e aquele homem com aquele bom emprego era muito mais ricos que Jacinto, trolha, e Francisca, digamos assim, sua doméstica.
A funcionária que os atendeu olhou para eles com um meio sorriso condescendente. Certamente estava habituada a receber pessoas como eles — sonhadores, crédulos, gente simples que vinha confirmar se um conjunto de números lhes tinha realmente mudado a vida. Não raras vezes haveria confusão, um número mal lido, uma troca de concursos, um chico esperto… Não era contudo o caso, Francisca tinha tudo mais que confirmado. Se houvesse um “não” era porque tudo aquilo não passava duma grande vigarice.
Seguidamente: nomes;“o vosso bilhete?”; confirmação; os muitos parabéns; felicidades; vamos ter de fazer isto e aquilo; vamos começar por….
que se sentissem à vontade e, escusado será dizer, que ainda não havia tempo para se estabelecer a relação desigual que habitualmente os muito mais ricos, eles, tem com os muito mais pobres, os bem vestidos que estavam à sua frente a debitar discurso. Afinal de contas, em termos relativos, sabemos que até há poucos dias as coisas eram exatamente ao contrário: aquela mulher e aquele homem com aquele bom emprego era muito mais ricos que Jacinto, trolha, e Francisca, digamos assim, sua doméstica.
Seguidamente: “o prémio é para os dois?” (nem se pergunta!); nomes
completos; cartões de cidadãos; morada; idades; telefones…
A mulher baixa e bem vestida tirava notas, entrava e saía para tirar fotocópias, entregava guias, papéis enquanto o homem alto e bem vestido relatava procedimentos, fases seguintes, cuidados, acompanhamento de técnicos, gestores,psicólogos, se necessário, e que também era necessária muita calma.
- Calma! Não tenho aqui dinheiro para vos dar!
- Mas não temos dinheiro para ir para casa, nem para comer, nem para dormir em Lisboa!
- Ah!Ah! Ah! Ah! Ah!
- Está a rir-se de quê? – disse Jacinto num espasmo de falta de paciência.
- Calma! Peço desculpa! Já me aconteceram aqui muitas mas nunca essa! A partir de hoje os senhores não terão problemas com dinheiro! Podem ter problemas com o dinheiro mas não terão problemas de dinheiro! No final destas nossa conversa vou falar com os meus colegas para tentar resolver a vossa situação para os próximos dias.
- Tem aí o seu nib?
- Isso não está no cartão de cidadão?
- Não, pretendo um número duma das vossas contas bancárias.
- Mas nós não temos conta no banco!
A mulher baixa e bem vestida tirava notas, entrava e saía para tirar fotocópias, entregava guias, papéis enquanto o homem alto e bem vestido relatava procedimentos, fases seguintes, cuidados, acompanhamento de técnicos, gestores,psicólogos, se necessário, e que também era necessária muita calma.
- Calma! Não tenho aqui dinheiro para vos dar!
- Mas não temos dinheiro para ir para casa, nem para comer, nem para dormir em Lisboa!
- Ah!Ah! Ah! Ah! Ah!
- Está a rir-se de quê? – disse Jacinto num espasmo de falta de paciência.
- Calma! Peço desculpa! Já me aconteceram aqui muitas mas nunca essa! A partir de hoje os senhores não terão problemas com dinheiro! Podem ter problemas com o dinheiro mas não terão problemas de dinheiro! No final destas nossa conversa vou falar com os meus colegas para tentar resolver a vossa situação para os próximos dias.
- Tem aí o seu nib?
- Isso não está no cartão de cidadão?
- Não, pretendo um número duma das vossas contas bancárias.
- Mas nós não temos conta no banco!
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