Francisca identificou
a origem da chamada, atendeu o telefone e teve o primeiro embate quando
reconheceu a voz do Jápintas no telemóvel do Pisca-pisca. À medida que este
largava as informações, sem meias palavras, num tom indecoroso, surpreendentemente
autoritário, portador de direito a pedir explicações, a atirar soluções,
Francisca ensabocava-se e contorcia o corpo, alternando-lhe a forma entre o
ponto de exclamação e o ponto de interrogação, até que chegou ao ponto em que
conseguiu libertar a fala:
- Já estás com os
copos, é o que é! Não tens mais nada para fazer senão telefonares a esta hora
com uma história dessas?
- Só tenho uma
pergunta a fazer:
- O que é que eu faço
ao homem? Estou aqui com o Pisca-pisca e ele tem a chave da tua casa. Dizendo
ele que é teu pai, já que aqui não há albergue, pode lá passar a noite?
- Meu pai calma aí!
Ele que durma em tua casa!
Se se tratasse duma
conversa cara a cara, teria de aguentar-se ao confronto, mesmo que virasse costas,
era bem provável que o interlocutor a perseguisse a mandar farpas e ganchos de
chamada à razão, mas o telefone tem esta vantagem – desliga-se e pronto.
- Esta mulher tem
cá um génio! – disse Jápintas de olhos nos botões do telemóvel.
Marçal interrompeu
o seu silêncio de velho apático, mas com consciência de personagem principal do
momento, e perguntou:
- Então? Que disse
a minha filha?
Desenvolveu-se a resposta
com a explicação possível. O coração social dos dois resistentes, sentindo o
fim do serão, começou a falar:
- Se ao menos a
estação estivesse aberta toda a noite como antigamente!...
Não iam abandonar o
homem ao orvalho e ao frio, era preciso dar-lhe enxerga e agasalho em algum
canto. Coube a Pisca-pisca ceder à compaixão e disponibilizar a solução mais
prática: dormiria na sua garagem, no banco de trás do táxi, mas com uma porta
aberta para não deixar cheiro.
Jápintas fez o
programa do dia seguinte, uma viagem dos três ao palacete de praia dos dois,
para um derradeiro confronto entre a verdade e a mentira. No meio de tanto
dinheiro, não há de faltar dinheiro para pagar o táxi e, em último caso, para
os fazer calar. Pisca-pisca não discordou porque nunca recusava um frete ou a
participação num caso com potencial para ser contado. O velho Marçal Marques não
disse ai nem ui, como se a sua vida estivesse entregue aos trilhos do acaso ou
duma predestinação.
Enquanto esta cena
decorria, ocorria uma chamada telefónica duma casa da beira atlântica, para uma
casa algures no Pinhal Interior. Um casal discutia, à distância, nos mesmos maus
lençóis: a mentira, que os protegia e os alimentava há algum tempo, explodira
nas suas mãos. Pressentindo as ideias que à mesma hora andavam a ferver em
Vale dos Ovos, os astros aconselhavam que se tomasse de urgência uma decisão. E
essa decisão foi Jacinto ficar onde está e Francisca mudar-se para um hotel onde
ninguém a reconhecesse ou procurasse.
Retomemos o fio da
meada do dia seguinte ao regresso de Marçal Marques às suas origens e viajemos
daí até à casa da praia onde, para desilusão da trempe da investida, ninguém
atende no vídeo-porteiro, nem nos telemóveis de um ou de outro, apesar das
repetidas tentativas do Pisca-pisca e do Jápintas, assessorados pelo silêncio ansioso
do pai reaparecido. A tentativa da visita frustada causava irritação, mas só
vinha confirmar que, Francisca e Jacinto ao não darem a cara, não estariam de
bem com a verdade, nem com os amigos.
Poder-se-ia
aceitar, pelos factos passados, que Francisca não quisesse conhecer o
verdadeiro pai, mas pelo menos podia atender o telefone! O ter espetado a toda
a gente a mentira que o pai era rico, não é crime e, por isso, a malta com o
tempo irá perdoar aos dois. A não ser que seja crime a origem dos sinais
exteriores de riqueza que vêm timidamente mostrando, sendo que, nesse caso,
mais cedo que tarde, as boas polícias que temos farão o seu trabalho e nós cá
estaremos para prestar informação, se tal contribuir para que se faça justiça e
ajudar ao esclarecimento da verdade.
Voltaram para o
Vale, de mãos a abanar, os dois comparsas, discutindo o destino que teriam de
arranjar para o passageiro do banco de trás, sendo que o mais acertado seria convencê-lo,
ou forçá-lo, a entrar no comboio no cais oposto de onde ontem arribou. Sendo
perceptível que dinheiro não tinha, fariam uma vaquinha e pagar-lhe-iam o
bilhete de volta para Santa Apolónia.
Entraram no café e
informaram o Abílio dessa decisão e, seguidamente, contaram em poucas linhas os
passos da sua aventura, ou melhor, da sua boa ação.
Não sabiam era
ainda a surpresa que Abílio, um homem maduro, de confiança e sereno, lhes
reservava.
Durante a manhã,
tinha recebido uma chamada da Francisca que queria confirmar se não era
brincadeira de mau gosto, essa história dum homem que aparecera a
identificar-se com o nome do seu pai e, se fosse verdade, que lhe contasse o
que comentavam as pessoas que reagiam ao acontecimento.
Que desse dinheiro
ao suposto pai e o encomendasse para de onde veio, que não tinha qualquer
interesse em vê-lo ou conhecê-lo. Pedia-lhe também que, resolvido o assunto,
lhe desse conhecimento e lhe apresentasse a despesa, que a conhecia há muito
como freguesa de boas contas.
Pisca-pisca e
Jápintas ouviam atentamente, entre a arrelia e o espanto, as novidades do homem
do balcão, quando se falou do pai, olharam para trás e viram um homem velho e
maltrapilho a chorar. Ainda insistiram com o Abílio para que tentasse novo
contacto, já que a eles, pelos vistos, não queria atender, mas este abanou em
simultâneo a cabeça e o indicador em sinal de negação:
- Ó senhores, não perceberam
o que eu disse? É assunto para encerrar e, uma vez que andam com ele, peço-vos
ajuda para lhe comprarem um bilhete e o pôr a andar daqui para de onde veio!
Com papas e bolos,
ao fim dumas horas, lá se conseguiu despachar no comboio o velho e desorientado
Marçal e, encerrado o episódio, Abílio ligou à Francisca dando-lhe nota disso
mesmo.
Com as pulsações a voltar
à frequência normal, depois duma noite para esquecer, Francisca voltou à sua
casa de praia.
Com o azul do mar a
amparar os seus pensamentos, dava voltas à piscina abrindo o seu passado. A sua
primeira memória de criança era numa instituição, nunca a trataram mal, mas
nunca soube o que era um afeto ou um laço familiar. Quando teve idade para
perceber que não tinha mãe porque ela morreu, aceitou. O que nunca conseguiu
aceitar, quando já crescidita lhe contaram, foi que o seu pai fora um cobarde
que a deixou sem ninguém no berço de nascimento. Para isso não existe perdão.
Será isso que ele quer agora pedir - perdão? Quererá apenas vê-la? Quererá
carinho ou afeto? Procurará ajuda ou dinheiro?
Ou terá vindo
apenas, qual enviado do diabo, para destruir a história perfeita que ela e o
marido tinham construído para justificar a origem do seu dinheirinho?
Pois que não restem
dúvidas, que a maneira abusiva e despudorada como tratou a figura paternal nessa
história, diz muito sobre a consideração que conserva por quem a enjeitou! Seja
qual for a razão por que agora o suposto pai aparece, só vem confirmar que não
tem vergonha na cara, sendo que, tal é tão certo como não ter dúvidas, que nem
vivo nem morto, queira alguma vez ver esse homem à sua frente.
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