domingo, 20 de julho de 2025

26- A história incrível dum casal que recebeu o euromilhões.

 


Vamos agora a Vila Facaia, para dar uma mão nos dias de redenção que Jacinto por ali pratica com devida abnegação.

Quando chegou, espantou e revoltou a mãe, babou e avivou o irmão – portador de doença psicomotora, recordemos – e voltou a enterrar o pai quando o soube, felizmente, morto. Tinham passado muitos anos, mas o mano continuava a mesma criança, limitada nos seus passos, com o mesmo sorriso inocente e, por detrás das rugas, pressentiu na mãe a mesma alma, lenta e ferida, conformada com a má sorte e com a frieza com que ele, o filho são, a abandonara ao mau-vinho do, felizmente, falecido.

Não adiantava chorar sobre as lágrimas derramadas, Jacinto tinha, portanto, de trabalhar para conseguir o perdão materno, que sempre se consegue, tornar mais digna a vida do irmão, dar um sentido novo à sua vida, honrar as suas origens, dar um fim honrado ao seu património financeiro.

Ao fim de alguns dias eram visíveis as melhorias nas expressões da mãe e do irmão. Para os outros facaios foi fácil engolir a versão de ter um passado de emigrante na Austrália, de ter agora voltado bem abonado e da mulher andar também na terra dos seus a matar saudades. Passadas semanas tinha fechado negócio e adquirira uma casa, na vizinhança, para remodelar e proporcionar outro conforto à família, dera um contributo apreciável para a Santa Catarina e começava a ser considerado um filho pródigo merecedor de público reconhecimento.

Cuidar dos seus transformou-se num prazer, voltar a viver no seu habitat de criança tornou-se um alimento. Para quem chegou com baixas expetativas, o regresso às raízes, supreendentemente abriu-lhe a porta duma nova vida, apenas perturbada pela sina popular de dar destino ao ditado de “sorte a jogo, azar no amor, traduzida na súbita interrupção da sua relação conjugal.

Não se pense, contudo, que a frequência dos contactos que mantinha com Francisca, se reduzissem à gestão da carteira e do segredo, a sua separação era mútuamente aceite com normalidade, a sua relação era amistosa, o que, por si só, não afastava a hipótese de no próximo encontro físico, renascer o verdadeiro amor, aquele que no fundo não é mais que uma amizade com momentos de sexualidade partilhada.

Estava, portanto, Francisca, inteiramente ao corrente do quotidiano e das emoções de Jacinto e este, preocupado, acompanhava de perto todos os pormenores do desmoronamento do embuste que arquitetaram. Até que ambos chegaram à conclusão que o melhor mesmo era Francisca vir a Vila Facaia para conhecer a sogra e o cunhado, para ver o que Jacinto andava a fazer ao dinheiro e para, presencialmente, combinarem uma estratégia para se desenvencilharem do imbróglio que lhes tinha posto a careca a descoberto.

E assim foi, Francisca chegou, foi bem aceite e aceitou bem. Para não agitar a harmonia familiar e a concórdia, dormiu com o ex-marido, teve um orgasmo e acordou bem, assim como Jacinto e, com tudo entre os dois mais ou menos bem, acordaram que, pelo menos um deles, tinha de ir a Vale dos Ovos pagar contas, esclarecer quem o merecesse, para depois desaparecer sem deixar rasto, abandonando de vez o passado, a casa, o povo e o povoado.

A terra natal de Jacinto parecia a este, o local onde ninguém daria com ele e onde ninguém questionaria a sua vida desafogada.

Seria com noites destas e conversas destas, que aguentariam viva a relação, sem perturbarem o estado de separação por mútuo acordo. Assim se despediram.

Durante a viagem, Francisca, de regresso à Casa da Pedra de Ouro, decidiu que, para já, essa iria continuar a ser a sua morada. Não se lhe oferecia outro lugar ou companhia para desfrutar da boa vida. Arranjar outro homem, ir para outra terra, procurar a filha, aprender a viver só, eram considerações a que atendia, mas a memória da última noite e o olhar pacífico do Jacinto, estavam a fazê-la reconsiderar.

As inseguranças que lhe traziam tantas dúvidas, tão poucas certezas, fizeram-na sentir-se de novo, em fim de adolescência, obrigada a aceitar um modo de vida e a decidir-se por um companheiro, por já ter idade e antes que fosse tarde.

Recordava as amizades que fizera na juventude e que eram para toda a vida, as juras com Jacinto que também eram de amor para toda a vida, o amor de mãe e filha que era inquebrável e para sempre. Refletia na família-ombro-refúgio-âncora-proteção-companhia, talvez tudo. E afinal, passados estes anos, não sabe do paradeiro de uma única amiga da adolescência; a relação com o único amor da sua vida está no estado em que está; a filha Lúcia está praticamente incontactável; o calor da família está quase tão frio como o berço em que o pai a abandonou.

Depois deste parágrafo de a puxar para baixo, alternou com outro de puxar para cima:

Crescera forte porque crescera sem família, a solidão sempre fora a mais fiel das companhias, Jacinto ainda estava ali, assim, mas estava ali, a filha ainda era filha, ausente, mas era a sua filha.

Depois deste pensamento positivo, outro pensamento positivo:

- Dinheiro não é problema!

Isto é o que dá estar sozinha numa casa junto ao mar. Cisma-se, sente-se o prazer da maresia, conforta-nos o poder de estar numa casa junto ao mar, mas vem à superfície a melancolia, a vontade que temos de querer sofrer, a capacidade de juntarmos a alegria e a tristeza a dançar juntas, a consciência e a sabedoria de assim termos de viver.

- Dinheiro não é problema!? O dinheiro é sempre um problema: ou por ser pouco, ou por ser muito!

Tanto assim é que, nos próximos dias, terá que se deslocar a Vale do Ovos para resolver um assunto, relacionado com o problema do dinheiro.

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