Vamos agora a Vila Facaia, para dar uma mão nos dias de redenção que Jacinto por ali pratica com devida abnegação.
Quando chegou,
espantou e revoltou a mãe, babou e avivou o irmão – portador de doença
psicomotora, recordemos – e voltou a enterrar o pai quando o soube, felizmente,
morto. Tinham passado muitos anos, mas o mano continuava a mesma criança,
limitada nos seus passos, com o mesmo sorriso inocente e, por detrás das rugas,
pressentiu na mãe a mesma alma, lenta e ferida, conformada com a má sorte e com
a frieza com que ele, o filho são, a abandonara ao mau-vinho do, felizmente,
falecido.
Não adiantava
chorar sobre as lágrimas derramadas, Jacinto tinha, portanto, de trabalhar para
conseguir o perdão materno, que sempre se consegue, tornar mais digna a vida do
irmão, dar um sentido novo à sua vida, honrar as suas origens, dar um fim
honrado ao seu património financeiro.
Ao fim de alguns
dias eram visíveis as melhorias nas expressões da mãe e do irmão. Para os
outros facaios foi fácil engolir a versão de ter um passado de emigrante na Austrália, de ter agora voltado bem abonado e da mulher andar também na terra dos
seus a matar saudades. Passadas semanas tinha fechado negócio e adquirira uma
casa, na vizinhança, para remodelar e proporcionar outro conforto à família,
dera um contributo apreciável para a Santa Catarina e começava a ser considerado
um filho pródigo merecedor de público reconhecimento.
Cuidar dos seus transformou-se
num prazer, voltar a viver no seu habitat de criança tornou-se um alimento. Para
quem chegou com baixas expetativas, o regresso às raízes, supreendentemente
abriu-lhe a porta duma nova vida, apenas perturbada pela sina popular de dar
destino ao ditado de “sorte a jogo, azar no amor, traduzida na súbita interrupção
da sua relação conjugal.
Não se pense,
contudo, que a frequência dos contactos que mantinha com Francisca, se
reduzissem à gestão da carteira e do segredo, a sua separação era mútuamente
aceite com normalidade, a sua relação era amistosa, o que, por si só, não
afastava a hipótese de no próximo encontro físico, renascer o verdadeiro amor, aquele
que no fundo não é mais que uma amizade com momentos de sexualidade partilhada.
Estava, portanto,
Francisca, inteiramente ao corrente do quotidiano e das emoções de Jacinto e
este, preocupado, acompanhava de perto todos os pormenores do desmoronamento do
embuste que arquitetaram. Até que ambos chegaram à conclusão que o melhor mesmo
era Francisca vir a Vila Facaia para conhecer a sogra e o cunhado, para ver o
que Jacinto andava a fazer ao dinheiro e para, presencialmente, combinarem uma
estratégia para se desenvencilharem do imbróglio que lhes tinha posto a careca
a descoberto.
E assim foi, Francisca
chegou, foi bem aceite e aceitou bem. Para não agitar a harmonia familiar e a
concórdia, dormiu com o ex-marido, teve um orgasmo e acordou bem, assim como
Jacinto e, com tudo entre os dois mais ou menos bem, acordaram que, pelo menos
um deles, tinha de ir a Vale dos Ovos pagar contas, esclarecer quem o merecesse,
para depois desaparecer sem deixar rasto, abandonando de vez o passado, a casa,
o povo e o povoado.
A terra natal de
Jacinto parecia a este, o local onde ninguém daria com ele e onde ninguém
questionaria a sua vida desafogada.
Seria com noites
destas e conversas destas, que aguentariam viva a relação, sem perturbarem o estado
de separação por mútuo acordo. Assim se despediram.
Durante a viagem,
Francisca, de regresso à Casa da Pedra de Ouro, decidiu que, para já, essa iria
continuar a ser a sua morada. Não se lhe oferecia outro lugar ou companhia para
desfrutar da boa vida. Arranjar outro homem, ir para outra terra, procurar a
filha, aprender a viver só, eram considerações a que atendia, mas a memória da
última noite e o olhar pacífico do Jacinto, estavam a fazê-la reconsiderar.
As inseguranças que
lhe traziam tantas dúvidas, tão poucas certezas, fizeram-na sentir-se de novo,
em fim de adolescência, obrigada a aceitar um modo de vida e a decidir-se por
um companheiro, por já ter idade e antes que fosse tarde.
Recordava as
amizades que fizera na juventude e que eram para toda a vida, as juras com
Jacinto que também eram de amor para toda a vida, o amor de mãe e filha que era
inquebrável e para sempre. Refletia na família-ombro-refúgio-âncora-proteção-companhia,
talvez tudo. E afinal, passados estes anos, não sabe do paradeiro de uma única
amiga da adolescência; a relação com o único amor da sua vida está no estado em
que está; a filha Lúcia está praticamente incontactável; o calor da família
está quase tão frio como o berço em que o pai a abandonou.
Depois deste
parágrafo de a puxar para baixo, alternou com outro de puxar para cima:
Crescera forte
porque crescera sem família, a solidão sempre fora a mais fiel das companhias,
Jacinto ainda estava ali, assim, mas estava ali, a filha ainda era filha,
ausente, mas era a sua filha.
Depois deste
pensamento positivo, outro pensamento positivo:
- Dinheiro não é
problema!
Isto é o que dá estar sozinha numa casa junto ao mar. Cisma-se, sente-se o prazer da maresia,
conforta-nos o poder de estar numa casa junto ao mar, mas vem à superfície a
melancolia, a vontade que temos de querer sofrer, a capacidade de juntarmos a
alegria e a tristeza a dançar juntas, a consciência e a sabedoria de assim
termos de viver.
- Dinheiro não é
problema!? O dinheiro é sempre um problema: ou por ser pouco, ou por ser muito!
Tanto assim é que,
nos próximos dias, terá que se deslocar a Vale do Ovos para resolver um assunto,
relacionado com o problema do dinheiro.
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