17 de junho de 2017 foi um dos dias mais trágicos da história de Portugal. As
gentes do Pinhal Interior - que já devia ter mudado de nome para Eucaliptal
Interior - há algumas décadas que se habituaram aos incêndios e aos rastos que
deixam. Mas, nesse dia, o inferno do fogo matou muita gente e o epicentro da
morte, foi a freguesia de Vila Facaia, concelho de Pedrogão Grande.
Depois
desta terra ter entrado na história, trazido ao texto este dia, seria
de engenho fácil, desemaranhar a corda do argumento e dar o nó final à “incrível
história dum casal a quem calhou o euromilhões” com o fim incrível: morreram
ambos no incêndio de Pedrogão Grande.
Sim,
Jacinto e Francisca viveram a tragédia, faziam parte da vida de alguns dos que
morreram, mas não vamos, desrespeitosamente, enfiar aqui o assunto como mero
exercício criativo, antes iremos fazer a abordagem como forma de honrar a
memória dos que então pereceram e a dor dos que sobreviveram.
Quando
viram o fumo a nascer a montes de distância, nunca pensaram que, passadas horas, o iriam cheirar, veriam pousar as primeiras fagulhas, avistariam as chamas
vivas a transpôr o horizonte do cume de Sarzedas, sentiriam o estalido infernal
dos salgueiros quando atravessaram a Ribeira do Outeiro, sofreriam o pânico de
ver o senhor dos infernos a entrar no seu quintal.
Nessas
horas de aflição os corações batiam forte, se é que batiam, corria-se muito e,
às vezes, era absolutamentente necessário uma pessoa sentar-se numa cadeira,
num muro, numa pedra, no chão. Ninguém tinha a roupa lavada e as lágrimas enlameavam
os rostos sujos. Todos ralhavam e ninguém se zangava, todos falavam e ninguém
acertava, todos amparavam e ninguém sentia amparo. Noutros anos, no fim do fogo
sentia-se tristeza mas também alívio mas, desta vez, a tristeza trespassou a
terra queimada e matou entes queridos, no lugar de alívio deixou o peso do
luto.
Para
Jacinto e Francisca, este dia mudou mais a sua vida do que o dia da sorte
grande. Jacinto daria todo o dinheiro que tinha para que aqueles montes e vales
voltassem a ter o verde que tinham quando era criança. Francisca daria todo o
dinheiro que tinha para que aquela gente não tivesse morrido.
Nos dias
que se seguiram, diziam estas coisas um ao outro, fizeram voluntariado com os
outros, abriram a carteira mais do que quaisquer outros, deram de si o que os
outros não tinham.
Até que
receberam o telefonema do banco onde tinham a conta mais corrente informando-os
que tinham passado um cheque sem cobertura. Bem que sabiam que a notícia do
grande incêndio que viveram tinha corrido mundo e, por isso, estranharam a
ausência dum telefonema da Lúcia a perguntar-lhes se estavam bem. Percebiam
agora porquê. Em poucos dias ela, o italiano ou o italiano e ela, tinham dado o
desfalque na conta a que lhes deram acesso, três milhões tinham voado,
restavam-lhes apenas cento e vinte e três e restava-lhe também o orgulho do
tacto que tiveram ao não abrir toda a verdade à filha única. Esta, nem sequer se
atrevera a ligar para saber se os pais estavam bem, porque estava convencida
que lhes tinha desviado, ou derretido, todo o valor do prémio.
Descoberto
o imperdoável que, podemos concluir, pouco os afetava em termos de extrato,
também os pais não telefonaram à filha a pedir explicações, ela um dia haveria
de vir pedir batatinhas. Aliás, uns tempos mais tarde, na sequência dum
telefonema para o Abílio, viriam a saber que, segundo informações do Paleco,
também emigrado no Luxemburgo, a Lúcia, depois dum período pródigo, estava
novamente na miséria. Costuma ser assim, os novos gastam tudo como se fossem
morrer amanhã e os velhos poupam como se vivessem para sempre.
Ao mesmo
tempo que estava provado que o que tinham nos bancos não podia ser confiado à
herdeira, era também assumido que não tinham nascido para serem ricos e que não
tinham competência para gastar tanto dinheiro, além de que, não o esqueçamos,
continuava a ser extremamente perigoso alguém saber da sua fortuna. Foi esse
perigo, aliás, que deu o mote a esta história, o medo permanente que as duas
personagens principais carregam, de alguém lhes encostar uma faca ao pescoço,
uma pistola à cabeça, uma motosserra ao sexo e os ameace com a alternativa:
-…ou o
dinheiro!
Encontraram
então, por estes dias de notórias necessidades para tantos daqueles que os
rodeavam, uma forma altruísta de aliviar a carteira e o coração e fazerem
alguma coisa enquanto não morrem, como fizeram os que nesta se foram, acreditemos para conforto nosso, para melhor.
Começaram
por um vizinho que tinha ficado rigorosamente sem nada depois do fogo ter
passado.
- Joaquim,
graças a Deus que temos algum dinheiro que não precisamos e podemos ajudar-te
no que precisares, exigimos-te, em troca, apenas duas coisas: que não plantes
eucaliptos e que guardes absoluto segredo de que fomos nós que te ajudámos. Nem
à tua mulher podes dizer, ouviste Joaquim?
Outros
joaquins e joaquinas se seguiram e receberam o que precisavam, sendo que a
todos foi exigido igual sigilo, tendo chegado ao ponto de já não haver pedreiro
para tanta obra nem plantadores para tanta árvore. O segredo era particular e
coletivo ao mesmo tempo. A maior parte dos contemplados teve de inventar
mentiras acerca da origem da ajuda e, a certa altura, todos tinham emprestado a
todos e ninguém tinha emprestado a ninguém.
Francisca e
Jacinto assistiam a tudo isto com um enorme prazer: eram recuperadas casas e
anexos, eram plantadas árvores em encostas e charnecas e, no que toca a mentiras sobre origens de dinheiros, já não estavam sós. À medida que o branco
do casario renovado se espalhava e o verde da nova floresta se estendia, iam
ganhando consciência da dimensão do montante do prémio do euromilhões que
tinham recebido e que o melhor destino que lhe podiam dar era distribuí-lo, semeando
felicidade e aumentando, desta forma, o seu valor. Comprovava-se assim que o
dinheiro, traz felicidade e que foram os ricos que espalharam o dito do
contrário para os pobres não os invejarem.
Esqueçam esse bla, bla, bla, que tantas vezes ouvimos, que se me calhasse que dava tanto a este, tanto prá ali e investia o resto. Tretas!
Burros aqueles que correm a jogar quando há jackpot como se não lhes chegasse o prémio duma semana normal.
Lorpas aqueles que esperavam que a história tivesse um final incrível, com Francisca e Jacinto a dar tudo num gesto registado em pedra de benfeitores duma causa justa, num investimento empreendedor que os tornasse ainda mais ricos, ou a acabarem ainda mais pobres do que eram antes.
Fica
provado que saber o que fazer a tanto dinheiro, nem em ficção é fácil. Ficamos
portanto assim, na normalidade em que se dão os destinos das vidas que não se
contam em livro: o casal Jacinto e Francisca, vivem normalmente a sua pacata
vida, com problemas de dinheiro, como toda a gente, apenas com a pequeníssima
diferença que o problema de dinheiro deles é dinheiro a mais.
Também não
vale a pena estar aqui a moer palavras, à espera que passem anos, para sabermos
o que lhes acontecerá futuramente: morrerão.
A Lúcia, se
quer vir a tempo de herdar alguma coisa, que venha, peça perdão e, se vir este
livro à venda, compre-o e diga-me alguma coisa, dê-me um sinal de que o leu que
é a melhor recompensa que quem escreve pode receber, sabendo de experiência que
é raro, quando não impossível, as personagens a si próprios se lerem. Ligue-me,
ter o meu número é já em si uma prova de que o leu.
Os locais e os nomes das pessoas são verídicos. Também é verdade que saiu o euromilhões a
um casal e que foi escrita a história dum casal a quem saiu o euromilhões.
Assim sendo, a única coisa que aqui pode ser posta em causa é se esta história
foi ou não incrível.
Digamos
ainda que, lá por isto ter sido tudo inventado, não quer dizer que não seja
auto-biográfico.
07/09/2025
Vila Facaia
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