domingo, 7 de setembro de 2025

33- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 


17 de junho de 2017 foi um dos dias mais trágicos da história de Portugal. As gentes do Pinhal Interior - que já devia ter mudado de nome para Eucaliptal Interior - há algumas décadas que se habituaram aos incêndios e aos rastos que deixam. Mas, nesse dia, o inferno do fogo matou muita gente e o epicentro da morte, foi a freguesia de Vila Facaia, concelho de Pedrogão Grande.

Depois desta terra ter entrado na história, trazido ao texto este dia, seria de engenho fácil, desemaranhar a corda do argumento e dar o nó final à “incrível história dum casal a quem calhou o euromilhões” com o fim incrível: morreram ambos no incêndio de Pedrogão Grande.

Sim, Jacinto e Francisca viveram a tragédia, faziam parte da vida de alguns dos que morreram, mas não vamos, desrespeitosamente, enfiar aqui o assunto como mero exercício criativo, antes iremos fazer a abordagem como forma de honrar a memória dos que então pereceram e a dor dos que sobreviveram.

Quando viram o fumo a nascer a montes de distância, nunca pensaram que, passadas horas, o iriam cheirar, veriam pousar as primeiras fagulhas, avistariam as chamas vivas a transpôr o horizonte do cume de Sarzedas, sentiriam o estalido infernal dos salgueiros quando atravessaram a Ribeira do Outeiro, sofreriam o pânico de ver o senhor dos infernos a entrar no seu quintal.

Nessas horas de aflição os corações batiam forte, se é que batiam, corria-se muito e, às vezes, era absolutamentente necessário uma pessoa sentar-se numa cadeira, num muro, numa pedra, no chão. Ninguém tinha a roupa lavada e as lágrimas enlameavam os rostos sujos. Todos ralhavam e ninguém se zangava, todos falavam e ninguém acertava, todos amparavam e ninguém sentia amparo. Noutros anos, no fim do fogo sentia-se tristeza mas também alívio mas, desta vez, a tristeza trespassou a terra queimada e matou entes queridos, no lugar de alívio deixou o peso do luto.

Para Jacinto e Francisca, este dia mudou mais a sua vida do que o dia da sorte grande. Jacinto daria todo o dinheiro que tinha para que aqueles montes e vales voltassem a ter o verde que tinham quando era criança. Francisca daria todo o dinheiro que tinha para que aquela gente não tivesse morrido.

Nos dias que se seguiram, diziam estas coisas um ao outro, fizeram voluntariado com os outros, abriram a carteira mais do que quaisquer outros, deram de si o que os outros não tinham.

Até que receberam o telefonema do banco onde tinham a conta mais corrente informando-os que tinham passado um cheque sem cobertura. Bem que sabiam que a notícia do grande incêndio que viveram tinha corrido mundo e, por isso, estranharam a ausência dum telefonema da Lúcia a perguntar-lhes se estavam bem. Percebiam agora porquê. Em poucos dias ela, o italiano ou o italiano e ela, tinham dado o desfalque na conta a que lhes deram acesso, três milhões tinham voado, restavam-lhes apenas cento e vinte e três e restava-lhe também o orgulho do tacto que tiveram ao não abrir toda a verdade à filha única. Esta, nem sequer se atrevera a ligar para saber se os pais estavam bem, porque estava convencida que lhes tinha desviado, ou derretido, todo o valor do prémio.

Descoberto o imperdoável que, podemos concluir, pouco os afetava em termos de extrato, também os pais não telefonaram à filha a pedir explicações, ela um dia haveria de vir pedir batatinhas. Aliás, uns tempos mais tarde, na sequência dum telefonema para o Abílio, viriam a saber que, segundo informações do Paleco, também emigrado no Luxemburgo, a Lúcia, depois dum período pródigo, estava novamente na miséria. Costuma ser assim, os novos gastam tudo como se fossem morrer amanhã e os velhos poupam como se vivessem para sempre.

Ao mesmo tempo que estava provado que o que tinham nos bancos não podia ser confiado à herdeira, era também assumido que não tinham nascido para serem ricos e que não tinham competência para gastar tanto dinheiro, além de que, não o esqueçamos, continuava a ser extremamente perigoso alguém saber da sua fortuna. Foi esse perigo, aliás, que deu o mote a esta história, o medo permanente que as duas personagens principais carregam, de alguém lhes encostar uma faca ao pescoço, uma pistola à cabeça, uma motosserra ao sexo e os ameace com a alternativa:

-…ou o dinheiro!

Encontraram então, por estes dias de notórias necessidades para tantos daqueles que os rodeavam, uma forma altruísta de aliviar a carteira e o coração e fazerem alguma coisa enquanto não morrem, como fizeram os que nesta se foram, acreditemos para conforto nosso, para melhor.

Começaram por um vizinho que tinha ficado rigorosamente sem nada depois do fogo ter passado.

- Joaquim, graças a Deus que temos algum dinheiro que não precisamos e podemos ajudar-te no que precisares, exigimos-te, em troca, apenas duas coisas: que não plantes eucaliptos e que guardes absoluto segredo de que fomos nós que te ajudámos. Nem à tua mulher podes dizer, ouviste Joaquim?

Outros joaquins e joaquinas se seguiram e receberam o que precisavam, sendo que a todos foi exigido igual sigilo, tendo chegado ao ponto de já não haver pedreiro para tanta obra nem plantadores para tanta árvore. O segredo era particular e coletivo ao mesmo tempo. A maior parte dos contemplados teve de inventar mentiras acerca da origem da ajuda e, a certa altura, todos tinham emprestado a todos e ninguém tinha emprestado a ninguém.

Francisca e Jacinto assistiam a tudo isto com um enorme prazer: eram recuperadas casas e anexos, eram plantadas árvores em encostas e charnecas e, no que toca a mentiras sobre origens de dinheiros, já não estavam sós. À medida que o branco do casario renovado se espalhava e o verde da nova floresta se estendia, iam ganhando consciência da dimensão do montante do prémio do euromilhões que tinham recebido e que o melhor destino que lhe podiam dar era distribuí-lo, semeando felicidade e aumentando, desta forma, o seu valor. Comprovava-se assim que o dinheiro, traz felicidade e que foram os ricos que espalharam o dito do contrário para os pobres não os invejarem.

Esqueçam esse bla, bla, bla, que tantas vezes ouvimos, que se me calhasse que dava tanto a este, tanto prá ali e investia o resto. Tretas! 

Burros aqueles que correm a jogar quando há jackpot como se não lhes chegasse o prémio duma semana normal.

Lorpas aqueles que esperavam que a história tivesse um final incrível, com Francisca e Jacinto a dar tudo num gesto registado em pedra de benfeitores duma causa justa, num investimento empreendedor que os tornasse ainda mais ricos, ou a acabarem ainda mais pobres do que eram antes.

Fica provado que saber o que fazer a tanto dinheiro, nem em ficção é fácil. Ficamos portanto assim, na normalidade em que se dão os destinos das vidas que não se contam em livro: o casal Jacinto e Francisca, vivem normalmente a sua pacata vida, com problemas de dinheiro, como toda a gente, apenas com a pequeníssima diferença que o problema de dinheiro deles é dinheiro a mais.

Também não vale a pena estar aqui a moer palavras, à espera que passem anos, para sabermos o que lhes acontecerá futuramente: morrerão.

A Lúcia, se quer vir a tempo de herdar alguma coisa, que venha, peça perdão e, se vir este livro à venda, compre-o e diga-me alguma coisa, dê-me um sinal de que o leu que é a melhor recompensa que quem escreve pode receber, sabendo de experiência que é raro, quando não impossível, as personagens a si próprios se lerem. Ligue-me, ter o meu número é já em si uma prova de que o leu.

Os locais e os nomes das pessoas são verídicos. Também é verdade que saiu o euromilhões a um casal e que foi escrita a história dum casal a quem saiu o euromilhões. Assim sendo, a única coisa que aqui pode ser posta em causa é se esta história foi ou não incrível.

Digamos ainda que, lá por isto ter sido tudo inventado, não quer dizer que não seja auto-biográfico.

07/09/2025

Vila Facaia



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