segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Uma família normal


Vanessa conhece-me ainda suficientemente bem para chegar ao café, aproximar-se de passagem da mesa que ocupo em solidão, espetar-me duas beijocas e fazer daquelas perguntas triviais do “então tudo bem?”, “onde é que estás?”, “que fazes?”, “casaste?” e mais duas ou três destas, intercaladas de respostas curtas e rematadas na minha simpatia anti-social com um “e tu?”
- Eu? Sou sempre a mesma! Vou sentar-me aqui ao lado com estas primas!...

Há muitos anos que não a revia. Tenho um vaga ideia de na meninice chegarmos a brincar aos doutores e dela se ter adiantado na emancipação, por ser mulher, e lhe perder a proximidade. Saiu da terra, deve ter arrendado quarto na vila, falou-se dela, que andaria na passa, que dera em puta para sustentar o vício, uma desgraçada, enfim, comentários que a aldeia não perdoa a quem a rejeitar. Eu, sempre do contra, lembro-me de um dia lhe fazer defesa:
- Fosse eu mulher, também não seriam as mãos as partes do corpo o meu sustento, vendido ando eu, aqui na fábrica, a rebolar barris de duzentos e cinquenta quilos e a rachar lenha para a lareira do patrão!

Vanessa, pela ausência, esqueceu e só me voltei a lembrar dela quando o António Variações saiu da tumba, na voz de outros cantores, a falar da filha de uma tal Maria Albertina. Coincidência, o único dia de Agosto que dediquei à terra, Vanessa estar ali para rever as primas, na mesa ao lado, a debitar vivências com o seu conservado estilo, enquanto eu disfarçava o ouvido, com as folhas do Correio da Manhã da casa e um tinto já com pique, também da casa!

Contava ela – eram duas as atentas – as suas férias todas cinco estrelas, desde o hotel à praia, passando pelo tempo, a comida e a diversão. Vanessa contava de tal modo entusiasmada que deixava transparecer a ideia que o ponto alto do seu gozo não eram as vivências mas sim a oportunidade de as contar. E mais ali, em que as primas, a julgar pela pele, nunca deviam ter passado além da Nazaré, o efeito do seu relato era de ginjas.

Ficara muito barato, os quatro com comida e meia pensão – ela devia querer dizer dormida e não comida – com todos os spas, lençóis novos todos os dias e "garçons" falando português – percebi que o paraíso fora algures entre Quarteira e Vilamoura – ficara em não sei quantos euros.
O António só estava bem na rua, o Fernando a comer, o João a nadar.
O João gosta de marisco, o Fernando de estranhos, o António do mar.
O Fernando dormia à tardinha, o João à noite, o António de dia.
O João é de discoteca, o Fernando é de livros e o António é de bar.
O Fernando adorou, o António adorou, o João adorou.
- Tu adoras os três!
Disse uma das primas! A conversa andou por aqui à volta e eu a pensar nas voltas da vida, com a Vanessa casada, dois filhos e férias de sonho…
- Prazer em ver-te João!

As três de saída e eu feliz com a Vanessa, a revivê-la na bacidez do tempo.
- Quanto é que devo Ti Etelvina?
- Está tudo pago!
- Quem?
- Foi essa cabra que acaba de sair! Vê lá o que fazes João, tu tens família!
- O quê?
- Então essa!!!... não regressou aqui ao fim de tantos anos com três homens?!…
- E então?! Fez família!…
- Quais família quais caralho João! Foda-se! Estou a dizer-te que vive com três homens ao mesmo tempo!
- Foda-se!

A Vanessa contou umas férias normais. Se for necessário continuarei a defender a Vanessa.

14 comentários:

MARIA disse...

Pois deixe-me que lhe diga, essa sua amiga Vanessa é um modelo de conduta . A próxima vez que a encontre pergunte-lhe com que artes , em harmonia conjuga três galos de capoeira, seguramente cantando no mesmo tom e compasso , em harmonia de espaço.
Ah, também indicações e contra-indicações da receita, para ser bem avaliada.
E já agora, também, se por acaso reencarnou da vida de um qualquer árabe de belo e frutuoso harém ou se espelhou em exemplo de outra localidade ...
Confesse lá:
Até gostou de ver a Vanessa ...

Savonarola disse...

Pelo que contas, seria um prazer para mim sentar-me à mesma mesa do café com essa tua amiga Vanessa. Sem segundas intenções, que o portuga é muito maldoso! Ora aí está, viver com dignidade, com gosto!

Um abraço anarquista

P.S. Como sempre, gosto muito dos teus comentários n'O Anarquista.

CORCUNDA disse...

Contra factos não pode haver argumentos e contra argumentos não há factos que cheguem.
Isto é o que se pode chamar de uma Vanessa com colhões.
Abraço.

Zé Povinho disse...

A Vanessa é uma valente mulher. Pode gostar de atirar com umas postas de pescada, mas lá que parece aguentar-se bem, isso...
Abraço do Zé

José Lopes disse...

Ganda Vanessa! Os homens que se cuidem, porque a concorrência está à vista.
Cumps

Metralhinha disse...

Excelente texto.
Deixem-me ser conservador e entender que 2 dos 3 homens eram os filhos.
Mas se assim não for também não faz mal, antes pelo contrário, afinal sempre cri que um homem só não pode satisfazer uma mulher.

MARIA disse...

Com sua licença, Majestade , estamos afinal, na sua casa :
METRALHINHA : não seja conservador . AQUI, perde toda a graça !...
Ou talvez não, pois vejamos , nesse caso a Senhora lá da Tasca é que via nas duas crianças da Vanessa, HOMENS ...
Ui, muito pior a emenda que o soneto...
Não seja conservador !

Pata Negra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
José Lopes disse...

Bem me parecia que já tinha lido esta narrativa e que até tinha comentado a valentia da Vanessa.
Cumps

JFrade disse...

Espero que desta vez o meu comentário não seja, outra vez, "removido por um administrador do blogue".
Para já este "por um" administrador do blogue dá-me logo as voltas às tripas. A mania das grandezas! Até parece que há um batalhão de administradores a administrar este blogue. Que eu me lembre houve um tal João Rato a que sucedeu um tal Pata Negra, mas em tempos diferentes, ou seja, o administrador é o mesmo só que mudou de nome. Certo?
Mas vamos lá ao comentário. É assim: eu acho que Ti Etelvina é uma invejosa e gostava de ter vivido o que a Vanessa estava a viver. E tem sorte porque se a ASAE lá desse um pulinho quem se fod** era ela porque não bastava estar a vender o tinto da casa 'já com pique' como ainda comprava o Correio da Manhã, que é um pasquim da pior espécie.
Quanto à Vanessa, só digo que gostava de a conhecer pessoalmente. Estou convencido que nos íamos dar bem.
JFrade

Rui Carvalho disse...

O J. Frade sabe muito mas não sabe que fui eu que aconselhei o João a mudar o nome para Pata Negra. Eu nunca gostei de ratos.
Rui Carvalho

jrd disse...

Um portento de ironia com um desfecho inesperado e brilhante.
Parabéns!

Milu disse...

Delicioso!
E já agora - muitos parabéns pelo seu talento. Sempre que venho ao seu blog, ou me rio, o que reconheço - me faz muito bem, ou fico impressionada, porque, estranhamente, muitas das suas vivências me são algo familiares, permitindo-me concluir que experienciei contextos de vida similares aos seus.