quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Quarto 3

(Se não leu o Quarto 1 nem o Quarto 2, este quarto não faz sentido)
As três mulheres da casa não pararam durante todo o dia: limpar, limpar, limpar; cozinhar, cozinhar, cozinhar; voltas e mais voltas à casa e à mesa; parecia que ia chegar um rei.
Quando regressei a casa foram-me apresentados os fafenses: o recém ex-presidiário, Virgolino, deixou transparecer no cumprimento a afinidade criada pela correspondência da fase do enamoramento; o afecto do aperto de mão atenuou o efeito do olhar neutro, da cicatriz ao canto do olho, da cabeleira aos caracóis encimando um corpo atlético que fazia sombra à minha franzina figura; o pai de Virgolino tinha rugas de operário a metros da reforma e largou-me um “É um prazer!” limitado e consistente, próprio de quem sempre fizera das tripas coração para endireitar a célula familiar; a mãe apresentava-se minhota e com ar de minhota mãe de família estendeu-me a mão; a irmã de ar trintona, sabidona e solteirinha apertou-me com dois beijos aos quais não reagi especialmente.
Dona Graça apresentou-me, orgulhosamente, como o hóspede estudante, carinhosamente como o seu filho branco e fez questão que eu entrasse na conversa ainda tímida – que bebesse um martini, que trincasse uns amendoins e desse algum ânimo ao festejado encontro.
Não contei ainda, mas conto agora, que entre as últimas cartas tinham existido uns telefonemas que me foram roubando a importância de escrivão, que foram feitas umas visitas ao presídio, que Graça conhecera, dessa forma, a família presente na sala. E outras coisas aconteceram que não cabem aqui ou porque me esqueci, ou porque a inabilidade de escritor de cartas alheias não me dá prosa para tanto.
- Amanhã tenho frequência! Gostava de ficar um pouco mas tenho de estudar!
- Mas jantas connosco!
Comecei a subir as escadas enquanto deixava a resposta de quem não tem argumentos para dizer não.
Quando desci para a festa a mesa estava já animada, já tinham sido ultrapassados os constrangimentos de primeiro encontro, já cheirava a noivado não declarado, já havia brilho de bebida nas expressões. Para um rapaz simples nada mais fácil do que estar com gente simples e, ao fim do primeiro copo, já contava das minhas. Depois da sobremesa e dos brindes veio a música e a dança, dancei com todas e até com o pai do Virgolino mas foi com a irmã do Virgolino que se me fecharam os olhos: as filhas da casa a verem um filme, os potenciais sogros a ferrarem o galho no sofá à espera do encerramento dos festejos para o abrirem e o preparem para a pernoita e eu e ela, no meio da sala, lentamente bailando um slow do Adriano Celentano. O par dos namorados-festejados já estava há mais duma hora no quarto grande. A solteirinha de Fafe esfregou-me as canelas:
- Ó menino João, não adormeça no meu ombro!
As meninas perceberam a hora de ir para a cama e subiram, a porta da entrada a abrir-se, o Zé Maria a entrar com um “boas noites” semi-etilizado, a marcar a distância com um subir imediato, o som pesado dos seus sapatos sobre as escadas de madeira a marcar o compasso à minha rendição:
- Tenho de ir à casa de banho!
Quando voltei à sala estava já um ambiente de camarata: a luz apagada, os pais e o meu derradeiro par de cama feita e em fase de adormecimento. Não tive nem sequer coragem para a despedida, fui dormir no quarto com o Zé Maria e, no dia seguinte, faltei à frequência.
(Na próxima quarta há mais Quarto)

19 comentários:

Archeogamer disse...

Mais um quarto....tenho mesmo que ler o primeiro, prometo!É que ando as aranhas, desde que li o 1º.
Devias fazer o blogue do quarto.

Abraço

Compadre Alentejano disse...

Estou acompanhando com todo o interesse.
Um abraço
Compadre Alentejano

Anónimo disse...

Isso é que S. Alteza Real me saiu um pardal.
Com que então não largava a irmã do Virgolino, até adormeceu nos seus ombros. Eram só carícias.
Bons sonhos.

joshua disse...

Rato, tu quando bebes um coto solta-te a verve e animas todos os ambientes, além de se te tornar fácil encontrar uns braços nortenhos que femeamente beijem. És alegre e fazes render o talento. Agora és pai de família por isso fica tudo em família.

Franzinamente para a Graça tão apetecivelmente preliminar como necessariamente epistolar, tu já sabias que por fim o Virgolino viria contornar os preliminares e dirigir-se directamente para posse bruta da que se quis tornar dele, pelo menos por enquanto e enquanto parece ser isso o que lemos neste Quarto Terceiro, o Terceiro, espero eu, de Dezenas ou Centenas de Quartos.

Abraço com coragem

PALAVROSSAVRVS REX

Anónimo disse...

O terceiro já marchou, venha o quarto e até lá não adormeças no ombro, para não faltares às frequências!
Também o que estavas à espera slow do Celentano?!

José Lopes disse...

Bem, agora o leque de opções aparece mais alargado, vamos ver o que sai daqui...
Cumps

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata Negra
A vida pela vida qual percurso caminhado. Li os Quartos todos e gostei. Já estava com saudades tuas.
É da crise. Precisamos de quem se rebele e não se formate. Precisamos dum Virgolino e de quem faça frequências.

Abraço

AJB - martelo disse...

estou para aqui preparado para ver o que passa no próximo quarto... mas há veia na prosa.
abç

Anónimo disse...

Isto está ficar MUITO melhor que uma telenovela, MUITO melhor que o "Rádio Tide" e "La Novia" (só os mais velhos saberão do que falo), MUITO melhor que "Uma Família Inglesa" que o nosso Joaquim Guilherme Gomes Coelho publicou em folhetins num jornal do Porto sob o pseudónimo literário de «Júlio Dinis». Todos ansiamos pelo quarto quarto, pelo quarto quinto, digo, quinto quarto e por aí fora, de quarto em quarto, sem nunca chegarmos à sala.
Continua a alegrar-nos com o teu jeito de contar histórias.
Um abraço.

Camolas disse...

- Nunca me enganaste, grande libertino!!!

Oliva verde disse...

Outro quarto, outra dança e uma frequência por fazer!!!
O trabalho apertava e o tempo não dava para tudo!!!rsrsrs
Fico à espera do próximo!

Charlotte disse...

Estou a ficar "agarrada" a esta saga. Gosto mesmo muito de te ler e olha que eu chego a ser chata, de tão exigente, em matéria de leituras.

Aguardo por novos episódios...

Jorge P. Guedes disse...

Ah, Ganda Virgolino!

Abraço.

joshua disse...

Caríssimo Rato, muito bem me fizeste com as tuas palavras. A Província tenta-me e muito. Estava mesmo agora a conversar com a minha mulher que, roçando como roçamos, aquase indigência, estamos na iminência de emigrar ou cá dentro para aí, Alentejo, Algarve, sei lá.

Quanto ao texto, ficas a saber que podes sempre trazer para aqui, teu reino, tudo o que entendas. Não poderíamos sintonizar melhor!

Aquele Abraço

PALAVROSSAVRVS REX

Jorge Borges disse...

Cheguei só hoje, sábado. Mas continuo fã dos Quartos!
A ideia do Odysseus é óptima: porque não um blogue dedicado a esta série de contos? Ou, até, a outros escritos literários teus?
Força!
Um abraço

José Lopes disse...

Reler é um exercício que se faz com prazer...
Cumps

Camolas disse...

Pública, faz uma festa de apresentação do livro , convida-me , que tenho saudades de beber uns garrafões contigo!

do Zambujal disse...

Faltaste à frequência?
O motivo não está explícito...
O Zé Maria ressona quando etililizado?
Ou a ida à casa de banho foi inoportuna e precipitada?

Há falhas no relato e não encontro razões para a falta à frequência...
Andas a baldar-te!

Um abraço (apesar de tudo)

MARIA disse...

Como Vª Majestade bem se arrumava nesse quarto ... vida boa ...

:)

Um beijinho amigo

Maria