sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Leitão à sexta

Hoje o Leitão é de porco autêntico, daquele que é capaz de fazer festa e alimentar uma parte da aldeia em dia de matança.
A primeira matança da minha memória conta-se assim:

Era Janeiro, mês em que o frio da França devolvia os emigrantes à terra, época em que nada havia para fazer com a terra, tempo em que o frio melhor conservava as carnes, altura certa para fazer a matança do porco que já estava mais que gordo.
Mal me levantei, comecei a seguir todos os passos do homem que era meu pai, empenhado em demonstrar-lhe que para homem também eu caminhava. Não tardou muito a chegada das pessoas mais chegadas para fazer o sacrifício.
João vai à barraca buscar 4 pregos e o martelo para fazermos a banca com estas duas tábuas e dois cepos / Vai buscar um balde de água para lavar as tábuas que estão cheias de teias / Bom dia Joãozito, hoje levantaste-te cedo / És tu que vais pegar o porco / Vai buscar a corda da burra para atar uma perna ao porco / Tens medo / Sai daí João que o porco ainda te morde / João vai chamar a mãe para trazer o alguidar para aparar o sangue / Tiveste medo / João vai buscar umas macheias de agulhas à meda e fósforos à cozinha / Vai buscar a forquilha velha que a nova não se põe no fogo porque destempera / Segura aqui com a sachola esta pata para chamuscar o lado debaixo da perna / Filho vai à adega encher o jarro e traz um copo para o pessoal / João vai à eira velha que há por lá uns pedaços de telhas de canudo para raspar o bicho / João agarra aqui nas unhas a ver se estão quentes / Pesava mais do que tu ó cachopo / João vai buscar mais agulhas / Vai buscar mais água à tina / João despeja aqui água nesta orelha / Despeja aqui na pata / João dá mais um copo ao pessoal / Segura aqui nas patas da frente João para começar a abrir o animal / O pessoal está com sede João / Vai buscar um baraço para lhe atar o cu / Vai chamar a mãe para trazer a água quente para escaldar a língua / Se queres saber como é o teu corpo olha aqui para o porco / Toma lá a bexiga que eu daqui a bocado faço-te uma bola / Olha que a malta está com sede João / Vai à barraca buscar o chambaril / Tu não o ajudas a levar que ele é pesado para ti / João vou agarrar-te ao colo e enfias ali a corda para pendurarmos o morto / Vai buscar um alguidar para o sangue escorrer / Agarra aqui nesta pata para sacarmos as tripas / Agarra o alguidar desse lado / Agarra aqui no fígado / Agarra aqui a ver se eu deixo / Vai buscar uma cana para manter o peito aberto / Dá um copo ao pessoal não vês que o pessoal está com sede / Os homens vão comer a bucha mas tu João vais com as mulheres ao ribeiro lavar as tripas que pode ser preciso alguma coisa….
À noite toda a gente se reuniu novamente para comer a cacholada. Comentou-se animadamente à mesa a criancinha que eu era.
- O João, pró ano já estarás com idade de ajudares e poderes fazer alguma coisa!
- E se fossem todos prá porra!?
E assim acabou valentemente o dia da primeira matança da minha memória com um valente estalo do homem que era meu pai.

Foto daqui

23 comentários:

Zé Povinho disse...

Hoje alguns olham com estranheza os modos e os actos, bem como os rituais que enfrentámos durante o crescimento, mas eis que aqui estamos, adultos e conhecedores da vida, com uma cultura que não vem nos livros e que a alteração de costumes vai fazer desaparecer dentro de uma ou duas gerações. Teremos realmente melhorado com a alteração de hábitos?
Boa matança e melhores enchidos.
Abraço do Zé

SILÊNCIO CULPADO disse...

Pata negra

Talvez nós não tivéssemos melhorado com a mudança de hábitos mas que a matança do porco é um ritual bárbaro eu acho que é.
Assisti uma vez (sem ver) e os guinchos do animal ficarão para sempre na minha memória.
Pata Negra, vamos à Pala mas para a matança não me convides.
Abraço em defesa do animal.

Anónimo disse...

Ah! Valente João. Depois de um dia tão cansativo ainda levas com dois pares de estalos e xi-xi cama. Como a vida era dificil nesse tempo. Hoje já pouco ou nada resta dessa vida: o cerimonial da matança do porco era uma festa para os HOMENS, para os cachopos era uma fase de aprendizagem para a vida. Até porque hoje existe a ASAE.
Um abraço João, sem estalos.

Compadre Alentejano disse...

Este post faz-me lembrar as matanças de porco em casa do meu avô. Aqui, as matanças eram mais amiúde, porque destinavam-se a comércio, e tornava-se já um hábito.
Belos tempos.
Um abraço
Compadre Alentejano

Tiago R Cardoso disse...

também lá em casa fazíamos essa matança...

Eu miúdo não era tão solicitado, muitas vezes até me pediam para não ajudar mais.

Brilhante post.

Um bom fim de semana.

antonio ganhão disse...

A força de trabalho sempre foi explorada e mal reconhecida... e quando a revolta se manifesta, logo surge a repressão!

Anónimo disse...

Obrigado D.João, Rei dos Leittões, por mais este belo naco de poesia que nos quiz oferecer. Em casa do meu avô paterno assisti, muitas vezes, a episódios semelhantes. E presenciei muitos mais porque o vizinho do meu avô era dono de um talho e tinha que ter, todas as semanas, carne fresca para a clientela. E nesses tempos carne fresca era sinónimo de porco ou então de carneiro depois da Páscoa.
Mas para matar o carneiro havia os profissionais vindos de fora que o faziam, de casa em casa, a troco da pele do animal. Outos tempos, outros costumes que lembramos com saudade. E, ao contrário do que muitos afirmam, não é saudade da idade que então tínhamos mas sim saudade dos tempos de solidaridade, de companheirismo, de entrajuda e de muitas outras coisas que o "desenvolvimento" destruíu definitivamente.
Alberto Cardoso

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Como eu gostei deste belo leitão à sexta!!! Faz-me recordar os meus tempos de criança em que meu avô materno matava dois porcos por ano, para os netos era uma ganda festa. Desde sempre que existe a lei da sobrevivência morrem uns para outros sobreviverem.Coitado do João... no fim de obedecer às ordens do pai ainda levou um par de estalos, era assim antigamente,batiam-nos sem nós o merecermos, mto diferente dos dias de hoje. Mas foi essa época que fez de nós os grandes homens de hoje.
Bom fim de semana
Luis

PS - Talvez pelo frio que se faz
sentir, o meu 1º comentário
não ficou bem, falta de
leitura no fim.Agradecia que
o eliminasse pf.Pelo lapso
peço as minhas desculpas.

samuel disse...

Tive algumas destas, com subtis diferenças. O meu pai não era perdido nem achado nestas actividades e nunca acabei a levar um estaladão.
Que saudades da minha "primalhada" toda de Ouca, Vagos, Aveiro.

Abraço

Anónimo disse...

E o sarrabulho? Traz mais um copo que fiquei com sede e nem sequer toquei no porco. E tu não refiles que te fartaste de comer o presunto e o salpicão!

MARIA disse...

"Mal me levantei, comecei a seguir todos os passos do homem que era meu pai, empenhado em demonstrar-lhe que para homem também eu caminhava"
Como deve orgulhar-se seu pai do homem e caminho que fez ...
Parabéns. É soberbo o texto. Não falta um pormenor nesta história que muitos vivenciamos mais ou menos proximamente também.

Bom fim de semana.

MARIA disse...

"estoria" no pós acordo ... ba ...

Kaotica disse...

a tua memória é fantástica, os termos, os ditos, o modo de falar, a enumeração das ordens, o desenrolar da história a puxar pela nossa imaginação ou conhecimento de causa, o desfecho... Como escreves bem!

Que estado de loucura tão salutar, inspirado e inspirador!

abraço

o que me vier à real gana disse...

Boa noite!

Mais um blog k vale a pena. Parabéns!

Zorze disse...

Pata Negra,

Não é tradição que goste de assistir. Os guinchos do animal em sofreguidão desesperante, custa ouvir.

Pronto, mas é uma tradição que reúne a aldeia e é sempre uma festa. Conheço uma aldeia alentejana muito simpática, em que quando ao fim-de-semana um mata o porco lá se juntam os homens da aldeia para ajudar.

Abraço,
Zorze

vieira calado disse...

Também, de tenra idade, assistia anualmente, a essas cenas.

Mas... a herança de família não teve herdeiros...

Um abraço

Mariazinha disse...

Em Alqueva city, terra dos meus pais, tambem "assisti" a matanas do porco.
Escondia-me sempre em casa dos meus avós,para não ver o degradante espectáculo.
Tinha pena do bacorinho...

Beijokas

Anónimo disse...

Porcos nunca matei, mas a galináceos já torci o pipo.
Fiquei com água na boca. Já comia uma morcela.

Saudações ensanguentadas do Marreta.

Anónimo disse...

pra aprenderes a ser homem...

abraço

Nocturna disse...

Magestade,
Desta vez não acredito naquilo que S.Alteza escreveu no meu «bloguinho».
A sua alma não se partiu quando estava a despi-la , isso é teatro, pelo que tenho lido nesta pagina a sua alma aguenta com todos os stripteses que desejar fazer. De qualquer forma araldites para a alma, é o que não falta, basta olhar à volta: um exemplo,uma boa amizade , e temos ssempre o recurso do vinho quente.
Um respeitoso abraço nocturno

j. manuel cordeiro disse...

Até parece que participei nessa matança. E até falas do chambaril! A parte que mais gostava nas matanças, coisa que hoje já não se faz porque se tem nojo, era do tacho do lombo com cachoca, onde todos se reuniam à volta para molhar a batata cozida. Com bolo de sangue grelhado. Então e mata-bicho de aguardente com passas de figo não se fazia aí?

joshua disse...

Genial! Passei pelo mesmo ritual, mas no fim, porque me fartei de fazer perguntas e havia ali quem tomasse a perguntadoria por singeleza, disse mesmo: «E se fossem todos para o caralho?! E foram. Que saudade!