terça-feira, 5 de janeiro de 2010

4- Porque é que há-de ter título?


A música é  ingrediente necessário à história. É bom ouvi-la enquanto se lê.
Se é o 4 é porque já houve o 3, o 2o 1 e haverá 5 se existir tempo real.

O Salão do Cipriano alterou a vida de muita gente e particularmente a dos que, como eu, eram músicos dos Quentes.

Aí ensaiávamos de porta aberta para os clientes do café e, se houvesse instrumento livre, qualquer um podia participar ou praticar. Nos fins-de-semana em que não havia contrato para fora, haveria ali baile até às tantas. Os mais chegados à casa participavam como porteiros, baristas, técnicos de luzes e, algum que desse uns toques, podia dar uma folga a um músico que precisasse de dar uma volta.

Cipriano ocupava a juventude na serventia aos seus sete ofícios e, por vezes, cedia-nos por completo a gestão das noites do seu “bataclan” reclamando para si apenas a exploração do bar.

Foi neste contexto que descobrimos e decidimos realizar o que só ao diabo lembraria: Um Baile de Noite de Natal. O sucesso e o dinheiro em caixa foram de tal ordem que repetimos o evento alguns anos. O sucesso advinha do facto de sermos os únicos da região suficientemente doidos para escrever num cartaz:

“Passa a Noite de Natal connosco, somos todos uma família”

Afinal muita gente não saía de casa porque não tinha para onde ir; afinal quem vive o Natal todos os dias não precisa nada do dia de Natal e quem só o vive no Dia de Natal, só por um dia, mais valia estar quieto; afinal os nossos pais não nos reprovavam porque queriam era que nós ganhássemos dinheiro para umas calças de ganga mas, e apenas no primeiro ano, impuseram uma salvaguarda:

- Tens de ir à Missa no Dia de Natal dar um beijo ao Menino Jesus!

Porque o baile acabara pelas cinco da madrugada, porque no fim da festa o salão teria de ser limpo e arrumado, porque era no dia que se faziam as contas, porque haveria ainda lugar para uma cerveja de conversa, fizemos directa e fizemos a pé os três quilómetros até à Igreja tendo sido dos primeiros a chegar depois do sacristão. Sentámo-nos no banco dos fundos. A nossa longa noite revelava-se nas nossas roupas, nos nossos cabelos, nos nossos olhos, e nos olhares cruzados. Sentámo-nos no banco dos réus.

O Natal daquela Igreja já não era o nosso. O padre dava apenas aos lábios, nos nossos ouvidos ecoava a potência das músicas da longa noite com outros santos … talvez Santana...

11 comentários:

José Lopes disse...

Gostos discutíveis, claro, mas depois de já terem festejado o Natal também foi uma grande maldade irem festejar novamente o mesmo acontecimento.
Grande Santana
Cumps

André D'Abô disse...

caro pata: a pergunta é pertinente: por que há-de ter título? por agora, ele não faz a mínima falta. a história vai bem, gosto de aguardar pelas próximas peripécias de cipriano e sua trupe. para mim é interessante acompanhar a escrita de uma história que tem músicos por protagonistas, músico frustrado que sou a buscar alguma melodia na palavra escrita.
animado este baile, teria sido ótimo nas minhas noites de natal...

belmonte disse...

Que linda estória de músicos.
Como diz o poeta, Natal é quando um homem quiser. Vamos à música e ao baile, a missa fica para depois.
A vossa sorte é que o padre também gostava de bailaricos.

mfm disse...

Com ou sem Santana,o beijo no pé do Menino Jesus é que te salvou!
Por aqui ando à roda desta tua vida.

MARIA disse...

Extremamente rico este texto: diz tanto para além das bonitas e bem estruturadas palavras que o compõem...
Diz de si, diz das tradições de um povo,de uma época, de sentimentos, de natal tradição e de "natal-afeição".
É muito bonito.

Foi uma época com as suas dificuldades, mas feliz, cheia de esperança, intui-se. Dela fazia parte a alegria da música e da dança, com tudo o que daí resulta para a vida das pessoas.

Então que tal " Clave de Sol e Pé de Dança" para título ...

Mas já diz tanto que bem pode "passar" o título.

Um beijinho amigo, Majestade.

Maria

salvoconduto disse...

Ninguém me tira da cabeça que foi ao som de Santana que foi criada a Tarraxa africana.

Eu pelo menos tarraxei muito... E desculpa lá, mas o último sítio para onde me lembraria de ir depois de tarraxar era para a igreja.

Camolas disse...

- Sempre desconfiei dos santos.
O condestável, o da ópus...
Sem música , sem poesia, sem teatro, sem namoros a vida perde a graça, haja Ciprianos neste mundo que ponham o carrossel a rolar.

do Zambujal disse...

Excelente crónica de um tempo, contando o que fica do tempo.
Muito bem (d)escreves o que é vivo, a vida, o viver!

Obigado e um grande abraço

Jorge P. Guedes disse...

Ouvi dizer que hoje, dia 6, é o dia do rei dos Leittões. Será? Se assim for, parabéns, que contes muitos e bons!

Um abraço.

Marreta disse...

Está tudo muito bem, só fiquei um bocado renitente com esta frase...:
"Aí ensaiávamos de porta aberta para os clientes do café e, se houvesse instrumento livre, qualquer um podia participar ou praticar." Será que o "bueno pá roçar mulata", se pode enquadrar na mesma?...
Em contrapartida gostei desta:
"Afinal muita gente não saía de casa porque não tinha para onde ir; afinal quem vive o Natal todos os dias não precisa nada do dia de Natal e quem só o vive no Dia de Natal, só por um dia, mais valia estar quieto".

Saudações do Marreta.

Milu disse...

Também me lembro de a missinha ser sagrada, desse por onde desse, nem que chovessem picaretas a minha mãe fazia questão de termos de assistir às missas de Domingo. Sinto que comi pela medida grande, tenho missas suficientes para o resto da vida.