segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sete Pés Oito

Entenderam-se no vinho e isso foi o mais importante.
Entender o francês, Sete Pés foi entendendo, dizer é que não conseguia quase nada. Lá se ia safando! Por exemplo, quando ela lhe disse que era casada, ele, prontamente largou um oportuno “moi non!...”.

Não se pense que o deficiente domínio do francês perturbava a gestação do predador com algum luso-complexo de inferioridade. Bem pelo contrário, à sua frente, à francesa é que faltava formação por não saber patavina da língua portuguesa. Neste assunto de línguas estrangeiras sempre o incomodara observar que muitos portugueses sentiam admiração pelos ingleses pelo facto de estes falarem inglês melhor que eles.

De qualquer forma, era agradável partilhar momentos, com alguém, com obstáculos no canal linguístico, sem intérpretes amadores pelo meio: os longos intervalos de silêncio, a preparação do que se vai dizer, as frases reduzidas ao essencial, o puxar pelas palavras da outra língua da memória, o remedeio com tentativas numa terceira língua, o inventar ou experimentar palavras novas, o recurso ao gesto ou ao objecto próximo, o desenhar na toalha de papel da mesa, o não entender nada, o finalmente perceber e, claro, o riso que o desfecho de algumas situações abria.

Já no albergue percebeu que ela não fazia intenções de caminhar com ele, que partiria, por seu hábito, muito cedo e que, assim sendo, caberia a Sete Pés a responsabilidade da entrega das chaves no local combinado.

Um “bon soir” contra uma “boa noite” e a concordância de deixarem as lâmpadas de vigia acesas formalizaram a despedida. De certeza voltariam a encontrar-se no caminho do dia seguinte, quanto mais não fosse no albergue de Pontevedra.

Sete Pés demorou a adormecer com a tormenta dos seus pés desavindos. Pé de Meia achava que por ser francesa era rica e que, por essa razão, deveria ter pago o jantar. O Pé de Atleta achava que ela podia ter sido cortejada até à cama. O Àgua Pé que a deviam ter embebedado. O Pé-Ante-Pé dizia que, com calma, ela ia lá. O Pé Chato achava-a velha. O Pé de Vento pedia que ouvissem o vento que zunia lá fora e que se calassem para dormir.
Para Pé Descalço, o descalçar das botas, o desenfiar das meias e o passá-las pelo nariz, o desdobrar o corpo sobre a enxerga, constituíam o acto solene do dia, uma espécie de oração da noite à vida. Os pensamentos que se sucediam contra a almofada, a conversa entre pés, o tempero do cansaço, davam um tal conforto que todos acordaram entre si que dormir era das melhores coisas do Caminho.

Da reunião de estado de adormecimento ficou a intenção que, dali para a frente, cada pé cumpriria o seu papel, revezados sucessivamente, de modo a não existirem atropelos de personalidade que denunciassem os sete espíritos e afastassem a hipótese dum possível estado de enamoramento.
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Todas as segundas feiras. Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra

8 comentários:

antonio ganhão disse...

Muito bem conseguido este teu texto, denotando uma revisão mais atenta que permite que todo o teu talento se solte, cheio de tiradas de puro génio; destaco esta, pelo seu fino sentido de humor, "muitos portugueses sentiam admiração pelos ingleses pelo facto de estes falarem inglês melhor que eles".

Cristina Torrão disse...

"cada pé cumpriria o seu papel, revezados sucessivamente" - ainda estou para ver como o Sete Pés vai cumprir tal proeza...

Também gostei muito do "filosofar" sobre as línguas estrangeiras e a falta, ou não, de formação. É tudo uma questão de ponto de vista ;)

do Zambujal disse...

Estás mesmo um pé leve, embora, às vezes, pareças pé de chumbo.
Atão deixa a francesa acordada à tua espera?

Um abraço

samuel disse...

Numa coisa todos os pés vão estando "de acordo": importante é o caminho...

Abraço... até Pntevedra.

Compadre Alentejano disse...

Vamos ver o que acontecerá no caminho para Pontevedra...
Abraço
Compadre Alentejano

MARIA disse...

Majestade,

Texto absolutamente delicioso, majestático!
É impressionante e belo a imagem que constrói para nos relatar o pensamento do homem : os múltiplos sentires que assaltam qualquer Ser numa situação similar à vivida por ele, são trazidos até nós, um, em cada pé, como se o homem não tivesse cabeça, mas os pés funcionassem como uma engenharia cerebral de moldes perfeitos.
Eu desconfiava também que não era a cabeça que os homens usavam quando o assunto pensado são as mulheres.
Mas algo assim,como o que Vª Majestade aqui criou, ultrapassa toda a minha capacidade de criação mental sobre este assunto : é genial !
Extraordinário este texto.
Perdemo-nos na beleza e singularidade das palavras e até quase esquecemos a estória : eu acho que o rapaz nem teve tempo para fazer o luto de sua mãe. Esta foi a única mulher que conhecera, ao que tudo indica, pelo que a aproximação a uma figura que lhe traga um pouco dessa, será reconfortante para ele.
Bom,
Mas se fosse só isso, não teria ele uns pezitos dirigidos a tão maus pensamentos ...
:)
Aguardemos o rumo desta deliciosa aventura por quem sabe !

Um beijinho amigo.
Maria

José Lopes disse...

Pés com muita(s) personalidade(s). O descanso pode clarificar as ideias.
Cumps

opolidor disse...

o sete pés é um malandreco, está à espera da oportunidade...

abraço