segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Sete Pés Doze

Despediram-se na meia-luz do dormitório. Ao lado, por cima e por baixo, de todos os beliches havia gente feia, talvez da penumbra, a remexer roupas, mantas e sacos de plástico. Pela cara, o que ia dormir na cama de cima devia ser o padre!... Ou a criada!
Porque não era mal-educado não se fez rogado com os seus compatriotas e acedeu a curtas e espaçadas palavras de coisas sem interesse. Já deitado e pronto para o descanso não o revoltou o facto de ter de gramar com uma dezena de orações porque acabara de receber a informação que há dois anos fizeram Tui-Porriño, o ano passado fizeram Porriño-Redondela e este ano foi a vez de fazerem Redondela-Pontevedra.

Na manhã seguinte era absolutamente necessário levantar âncora antes que aquela gente acordasse e, quem sabe, o destino não unisse os Sete Pés na partida com aquela que por aqui se fala. E assim foi, com a noite mal dormida pelo incómodo dos sonos da malta da paróquia portuguesa, levantou-se e sossegou com o facto de notar ainda os haveres de Marie lá ao fundo. Com o corpo e a tralha preparada saiu do albergue e postou-se no jardim junto à estátua do peregrino. Ao fim de um longo quarto de hora seguiu os primeiros passos da Marie a partir. Esta não se mostrou surpreendida pela sua espera e os seus bons dias e o seu aval à muda proposta de pedido de companhia estavam incluídos na primeira frase da manhã:
- Allons y?!

Com passos mudos, percorreram as ruas até ao centro da cidade. Chegados à incontornável Praça de Ferrería, tomaram o pequeno-almoço no primeiro café que encontraram aberto, deram uma volta ao Santuário da Virgem Peregrina e à Praça da Estrella onde Marie pediu a um transeunte que lhes tirasse uma foto juntos.
Água Pé ficou registado com uma expressão comovida: nunca tinha saboreado a experiência de alguém ter requerido uma fotografia na sua companhia.

Aliás, na pequena casa em que a mãe o resguardara do relento não existiam fotografias com o menino em pelota, do casório dos pais – pai incógnito não deixa registo – dos tios, dos primos, dos antepassados ou do grupo do curso de costura. Apenas uma moldura com o avô materno, algures no Brasil de onde nunca mais regressara. Quando a mãe morreu, na volta que deu pelas gavetas, Sete Pés deitou para o lixo uma em que a mãe estava numa festa fina, acompanhada por um desconhecido para o qual, provavelmente fizera serviço de acompanhante.

Pelo contrário, na casa dos Alpes de Marie, deveria existir uma galeria de fotos de recordações de família, do tetra-avô ao bebé da era digital que ainda está no ventre e já é ecografado.
Percebe-se, portanto, que para Sete Pés fosse novidade o fazer de fotografo de Marie pousando junto à estátua do albergue e que lhe desse arrepio ser fotografado ao lado dela na Praça Principal de Pontevedra.

Marie disse que ia fazer não sei o quê, talvez necessidades, e os Pés ficaram sentados num banco da praça a fazer a guarda das mochilas e a pensar acerca do registo das imagens, do tirar fotografias do Caminho, da banalização da imagem, dos casamentos em que até os noivos andam a filmar. O acto de registar momentos em máquinas cria ruído na vivência dos momentos e a artificialidade do registo trai a realidade. Mais do que a imagem, vale o olhar!...
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Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra.

7 comentários:

Camolas disse...

Esta centopeia enleia-me a cabeça e dá-me nós no cérebro.
Então essa Marie nem ata nem desata?
Cá para mim vai tudo acabar a salivar .

Camolas disse...

Esta centopeia enleia-me a cabeça e dá-me nós no cérebro.
Então essa Marie nem ata nem desata?
Cá para mim vai tudo acabar a salivar .

samuel disse...

"O caminho" a criar o seu rumo.
Deixemo-los ir...

Abraço.

Anónimo disse...

O acto de registar momentos em máquinas cria ruído na vivência dos momentos e a artificialidade do registo trai a realidade. Mais do que a imagem, vale o olhar!..
Pensamento inspirado.Totalmente em sintonia.Um abraço anarquista.

Compadre Alentejano disse...

Sete Pés comporta-se como um verdadeiro gentleman.
Porriro, pá!
Abraço
Compadre Alentejano

do Zambujal disse...

Allons-y!
Tudo muito bem contad(inho).
Ou dos encontros felizes não rezam as crónicas?

Cristina Torrão disse...

Isto está a ficar cada vez mais romântico. O Sete Pés vai devagar, mas lá vai indo...

Allons-y!