Foram dos primeiros a deixar o albergue. Nesta parte do território norte da Galiza a densidade populacional desce notoriamente e as raras aldeias que se atravessam cheiram a criação intensiva de gado bovino.
Ao longo do dia os ciclo-peregrinos e os supostos irmãos e irmãs, ultrapassá-los-iam com alegres saudações.
Marie France levava, quase sempre, umas centenas de metros de avanço. Essa distância adiava o desejo, sempre presente – lembre-se que só se fez amor ainda um dia e já lá vão sete e que Sete Pés era rapaz para vinte anos – e atrelava um comboio de fantasias:
Pé de Vento – naquele moinho abandonado!... Pé Chato – de meia em meia hora!... Pé Ante Pé – atrás daquela moita!... Pé de Meia – dava tudo o que tenho!... Pé de Atleta – no meio da estrada!... Pé Descalço – todos nus!... Água Pé - Na retrete do próximo café!
Mas quando Marie esperou para acertar passo, nem beijo se deu quanto mais sinais de enrolamento!
… já que Marie tinha o pé mais ligeiro, que retomasse e levasse o seu ritmo de andamento! No extremo, encontrar-se-iam no albergue de Oliveiroa.
Mal sabiam os pés que os esperava a mais dura prova de todo o Caminho! Chegaram a temer o pior, sucumbir no deserto por falta de socorro. Pelo passo de lesma e pela quantidade de gente que tinha passado, Sete Pés seria a última alma do dia neste troço.
Nunca mais se via sinal de casario que lhe desse alívio, nem ao menos o aconchego dum chão de árvore onde se pudesse deitar um bocado para retemperar. Só via bostas de vaca e estrada asfaltada e, de vez em quando, animava-se um pouco por ouvir um barulho de um tractor. Se o agricultor por ali passasse, pedir-lhe-ia boleia, fosse para onde fosse.
Quando voltou a ver gente, já estava a atravessar a Ponte sobre o rio Xallas, à entrada de Oliveiroa. Deitou-se no banco de uma paragem de autocarro. Uma mulher que o viu ali naquele estado foi buscar-lhe água. Recebido o apoio sentiu forças para vencer os dois quilómetros que o separavam do albergue. Este fica localizado num pedaço de aldeia antiga recuperado para o efeito.
Sete Pés subiu em andar e rosto esmorecidos o arruamento ladeado pelos vários edifícios de traço rural que compõem as instalações. Sentados por ali em rebates e muros estavam parte dos companheiros da noite anterior. A malta das bicicletas, essa não, não era a mesma - por questões óbvias as etapas diárias não coincidiam.
Ouviu rebentar uma salva de palmas que encorajavam a sua chegada à meta, olhou desconcentradamente para o seu público e agradeceu com um sorriso arrancado ao extremo do cansaço.
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Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra.
5 comentários:
As peregrinações estão directamente ligadas ao sofrimento e ao cansaço. Sete Pés começa a habituar-se.
Cumps
Sinto que tenho algo em comum com esses dois heróis da sua estória Majestade : serão pés grandes ?
Não sei bem, mas sinto-me na vida peregrina e como eles nunca mais acerto o passo :)
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O seu texto é uma verdadeira prenda. Aliás Vossa Majestade escreve cada vez melhor e a sua escrita tem uns traços "queirozeanos" tão engraçados.
Com que então o cheio era intenso e a criação de gado bovino.
Está-se a ver ...adivinha-se ...
O sete pés se calhar chamou-lhe outra coisa. :)
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Gostei muitíssimo e como sempre seguirei com muito interesse a restante narrativa.
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Um dia feliz, Majestade.
Um beijinho amigo
Maria
Esperemos que receba a justa recompensa... agora não os ponhas numa camarata!
O mal do rapaz é ser preguiçoso. Então, um moço de vinte anos chega ao fim da etapa nesse estado, depois de todos os outros lá estarem?
Lá ideias, não lhe faltam, mas daí à concretização...
Gostei do albergue (pelo menos, do aspecto exterior :)
Espero que não haja só camaratas ;)
No início do texto comecei a desenhar este capítulo novelístico e a esfregar as mãos, mas, fintaste outra vez.Ainda não foi desta que deram mais uma trancada. Há mais caminho e tempo...calma.
abraço
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