segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

27- O Caminho do Fim da Terra

Madrugaram. Antes de partirem, teriam de tomar uma decisão: o Caminho tinha ali uma bifurcação, ou se partia para Múxia e se terminava a peregrinação no Cabo de Finisterra, ou se fazia o contrário e se acabava no Santuário da Nossa Senhora da Barca, em Múxia. Pelos encontros que viriam a ter pelo Caminho acabaram por perceber que foram os únicos a escolher de Oliveiroa a Múxia e dali a Finisterra. Na justificação encontrada pelos dois, o seu objectivo final era chegar ao Fim da Terra e não ir ver o casco de uma barca de pedra em que a Virgem teria navegado para aparecer a Santiago. Acrescente-se que ambos tinham conhecimentos de física suficientes para poderem duvidar dessa da barca de pedra.

Mudando de física, Sete Pés recuperou de tal forma da véspera - o amor também faz milagres - que naquele dia só lhe apetecia andar. Parecia que os pés o puxavam para a frente e, desta vez, era Marie que ficava para trás e ele que tinha de fazer as esperas junto às sombras e junto às fontes.

Espera única aconteceu quando atingiu a primeira cumeada do caminho que deu vista ao oceano. Três pés fizeram-se crianças e ficaram presos de olhar a dizer “olha o mar”, três pés olharam para trás e gritaram para Marie “mar à vista!” e o sétimo pé, Pé de Atleta, disse para consigo, este mar é um obstáculo que nos vai impedir de continuar! Caminhar sobre as águas?! – Outra vez a física!!!...
Quando Marie se aproximou ao ponto de poderem compartilhar, ficaram ali olhando como se fosse a primeira vez que viam o mar. Sentaram-se e começaram a “divanavegar”:

- Tudo o que está à volta, o céu e os campos verdes que se estendem por aí abaixo até à costa, são apenas a moldura que se esquece quando se aprecia um quadro. E o quadro é o mar, pintado vivo, com as águas obedientes ao mando do vento, brilhando em línguas de sol reflectido, o mar. Como é possível que uma massa homogénea que se observa de longe tenha tanto para contemplar?! Que força! Quanta poesia e afinal é só água e mais água eterna e igual!
- Quando eu era pequeno cheguei a ter uma ideia de negócio genial: exportar água salgada para países sem mar!
- E se tudo o que é água fosse vinho e a água tivesse o papel do vinho?! Beber vinho, tomar banho em vinho, lavar a roupa com vinho, chover vinho, rios de vinho, mar de vinhos!...
- Cala-te! Muito vinho dá enjoo!
- Mas que jeito teria uma festa com água?!
- Daqui por uma hora, por volta do meio-dia, lá estaremos, aquela povoação que se vê além, deve ser a vila piscatória de Múxia!... Calcorreemos a parte de baixo da moldura!

Aliviaram o passo para a velocidade de burro. Melhor dizendo, como se fossem os dois de burro, com o azul do céu que dividia as copas das árvores como guia, a colherem pássaros e pêros e a separarem-nos para um e outro lado dos ceirões. Isto é, separando geografia de poesia, Costa da Muerte – assim se chama o mar onde embica a linha de fuga que o burro segue como fim – de “lágrimas de Portugal”...
E depois Maria a rematar:
- C’est la mer!
- Não pisei nada nem me cheira mal!
- Ce qu’il était?
Enfim, o mar, vida e morte, paz e tempestade, poesia e transtorno, um novo capítulo no Caminho, o mar!
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Todas as segundas feiras.
Pode(s) ler toda a história em O Caminho do Fim da Terra.

7 comentários:

antonio ganhão disse...

Brilhante, com um toque final de humor. Gostei da moldura que envolve o mar.

José Lopes disse...

La mer, só que com maresia que até nem é um smell desagradável.
Cumps

Zé Povinho disse...

Parabéns!
Abraço do Zé

opolidor disse...

"... pintado vivo, com as águas obedientes ao mando do vento, brilhando em línguas de sol reflectido, o mar. "

- Pata: um retrato real, bem talhado na escrita.

abraço

do Zambujal disse...

Diria que atingiste um ponto alto da crónica no parágrafo em que "eles" encontram o mar.
Então quando os três pés se fazem meninos e espantam "olhó mar!", e ficam presos no espanto!...
Muito bem, pá!

Grande abraço

Anónimo disse...

Interessante como os comentários referem quase todos o mar,diferindo na perspectiva.É,temos um fascínio pelo mar que muitas vezes se transforma num chamamento.
Costa de Muerte - .......- de " lágrimas de Portugal"
Abraço mfm

MARIA disse...

Majestade :
Então... por águas e vinho ...
:)
É tão extraordinária a forma como escreve !
O problema é o caminho.
Cortados todos os caminhos por terra, na impossibilidade de andar sobre as águas, ainda resta a possibilidade de um resgate aéreo.
Claro que a 7 pés com tanto pé no chão, não há-de agradar a cabeça no ar :)
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Isto para esses dois está muito difícil !!!


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Para si Majestade, bom carnaval, um beijinho amigo.

Maria