sábado, 13 de fevereiro de 2016

Porque hoje é Dia da Rádio

Tinha de regressar a Portugal, não suportava mais as saudades da mulher e dos dois pequeninos.
- Vou amanhã! Podes pagar o que me deves?
- Este rádio serve?

Além do fogão passámos também a ter rádio. A minha mãe era uma devota do aparelho. O rádio tem um aspecto bem francês e, na altura, o seu design dava um ar de modernidade à casa. A minha imaginação de pequenino, por vezes, punha-se a divagar sobre o que se passaria no seu interior oculto. Fartava-me de espreitar pela grelha de ventilação, parecia-me ver uns bonequitos em miniatura, insisti bastante mas nunca consegui autorização para abrir a caixa e desvendar os seus mistérios humanóides.

Era difícil a Guarda Republicana surpreender, ainda vinham a léguas a jusante, multando aqui e ali pelas duas razões de sempre - por tudo e por nada – e já um qualquer voluntário mensageiro trouxera à aldeia o “toque de esconder”. Nas tabernas, nos pátios, nas casas e em outros sítios haveria sempre alguma coisa para disfarçar ou para esconder.

- João, leva o rádio daqui, vai ao leirão de baixo e esconde-o no milheiral.
Não me recordo de haver tempo ou expressões para porquês, devo ter tido uma revelação súbita de consciência política. Quando o par de fardas armado passou à minha porta, a minha mãe fez de conta que mexia uns feijões que secavam ao sol em cima de uma manta, eu fiquei, firme e vertical, na berma do caminho, como quem assiste a um desfile militar, e era! Eles nem sequer dispensaram o olhar à minha criança.

Um rádio destes tinha de continuar, sempre vivo, no espólio da família. Há mais de quarenta anos que não se cala, os Parodiantes de Lisboa, o Badaró, o Simplesmente Maria, as canções de Abril, os noticiários do PREC e os tempos de Antena da AOC (Aliança Operária e Camponesa), o Rock em Stock, o Café Concerto, o Passageiro da Noite, a História Devida, um rádio que acompanha a história sem RAM, sem ROM, sem disco rígido, sem memória – é na ausência de memória e na sua dimensão temporal que reside a sua grandeza.

Só esta grandeza tem permitido que eu, de vez em quando, durma dentro do meu rádio afrancesado que me calhou em sortes. Costumo deitar-me no primeiro andar de amplificação, com a cabecinha radiouvinte recostada num condensador electrolítico de 15 microfarads e com os pés sobre uma resistência da ordem dos mega-ohms. Antes de me deitar desligo os terminais do altifalante e adormeço a ouvir o som directamente do transístor bipolar BC557.

Viva o meu rádio que muda de pilhas de seis em seis meses, que diz o que outros dizem, que toca todas as músicas, que é meu por herança, que não tem memória e que faz com que as pessoas pensem que quando eu falo dele é porque não tomei os comprimidos! Maluco eu? Maluco só se for pelo meu rádio!

10 comentários:

cid simoes disse...

E o copo de água em cima do rádio para que, segundo diziam, não detetassem que estávamos a ouvir a BBC e mais tarde a rádio de Argel.

Zé Marreta disse...

Embora a Rádio de hoje já não tenha a mesma aurea da de outros tempos, continuo a preferi-la ao LCD de 55 polegadas e aos terabytes computarizados. E, evidentemente, não podia, tal como tu e esta bela homenagem que aqui fizeste, deixar passar em claro o 1º Dia Mundial da Rádio!
Viva a Rádio e o rádio!

Saudações do éter!

MARIA disse...

É uma delícia, um verdadeiro prazer ler a sua escrita de tanta qualidade.
Faço-o sempre não com a parcialidade de uma seguidora atenta e habitual daquilo que escreve, mas com a imparcialidade sincera de quem a cada nova vez referencia uma descoberta de excepção. Está a Rádio e o Rei que assim escreve de Parabéns. É um prazer relê-lo. Um beijinho amigo


Maria

Zé Povinho disse...

Nos piores momentos lá estava a rádio para nos dar esperança, a esperança que mais tarde surgiu...
Abraço do Zé

maceta disse...

o rádio, os jornais, os livros, mas de papel... nada os subsitui.

abraço

salvoconduto disse...

Pois eu fui mais ousado, abri-o, revirei-o, inspeccionei e f... não uma mas duas bábulas. Te garanto que nestes anos todos já abri muita coisa, rádio é que não voltei a abrir mais nenhum, talvez seja por aminha curiosidade ter sido saciada, ai foi foi.

do Zambujal disse...

Bem gravado!
Eu ainda sou dos relatos do hóquei de Montreux, ouvidos em galena!
Mas também tenho histórias de rádio,
Qualquer dia conto-te umas do Tempo Zip!

Um abraço

Manuel Veiga disse...

diz-me que rádio ouviste... e digo-te quem és.

abraço

Judite Castro disse...

Lembro-me que quando o rádio não funcionava, se dava um murro. Um dia o mais novo de nós os sete deu um murro tal que o partiu...
Não me lembro do castigo, costumava ser geral: ninguém permitia que o culpado se acusasse.
Sei que apareceu outro novo.
Cá em casa continua a haver sempre rádio ligado na cozinha.

JFade disse...

Lembro-me perfeitamente e que saudades. Bons tempos esses, que foram e nunca mais voltarão.


Calma pessoal, estou a referir-me ao tempo em que li esta história pela primeira vez aqui no Rei dos Leittões. Em que havia muita malta a ler e, principalmente, a comentar os escritos do Pata Negra. Agora é uma tristeza. A malta de então ou morreu, ou emigrou, ou tiveram de por o computador no prego ou transferiram-se para o facebook e/ou twitter e têm centenas de amigos e milhares de 'gosto'. É a vida...