sábado, 20 de junho de 2015

A tradição das amêndoas da Páscoa

Era já tradição do longo priorado do prior Formiga, nos modos, nos tempos e locais habituais, recordados em avisos do final da missa, fazer a distribuição de amêndoas às crianças. Ao nosso lugar calhava, por costume, o sábado da pascoela e o cabeço Leitão, local ermo e de mato alto mas onde o “carocha” subia.

Chegado o carro, depois da espera ansiosa, o padre abria o saco que trazia no banco do pendura e a canalha tomava posição de olhos erguidos como os das galinhas quando se lhe dá milho. Não, não se fazia fila.  Ele atirava macheias delas para o meio do mato, tão longe quanto os seus lanços conseguissem, e ficava divertido a observar a perícia de cada um e a avaliar quem apanhava mais. Quem tinha bolsos fazia por enchê-los, quem os tinha rotos, alargava as meias para as juntar, quem não tinha meias, sentia-as como pedras nos sapatos e o Torto, que nem sapatos tinha, picou-se.

O Chiquito, não foi na brincadeira e ficou com uma saca vazia na mão ao lado do lançador.
- Porque não fazes como os outros, meu menino?! Julgas-te mais do que eles?! Vê-se bem de quem és filho! Vê-se bem que vens ensinado pelo teu pai!

O silêncio de homem do Chiquito foi interrompido pelos gritos do Torto.
- Piquei-me! Ai! Ai! Piquei-me! Ai que me dói! Ai o meu rico pé! Ai o meu pézinho que me faz tanta falta!...

A gritadeira de dor mobilizou todos para junto da vítima, incluindo o padre que, como é natural, dirigiu o socorro.  Todos, menos o Chiquito que - tal como havia sido previamente combinado – aproveitando a distração geral, passou pelo lugar do pendura, atestou em segundos a sua saca e despareceu discretamente sem dizer aqui vou eu.

- Isso não é nada rapaz! Tens é de pensar em trabalhar para arranjares dinheiro para uns sapatos!

O padre partiu sem dar pelo roubo e os outros ficaram espantados a olhar para o Torto que desatou a rir a bandeiras despregadas.  

Francisco dos Santos, conhecido por não ir a missa nem à confissão, mas respeitado por direito próprio, tinha estabelecimento aberto onde vendia copos e dava tremoços. Naquele sábado também ofereceu amêndoas.

Não tardou muito que a marosca do Torto com o Chiquito corresse o povo e, inevitável, fosse parar aos ouvidos do prior, alegadamente pela fieldade de Albinito, pretenso santinho, candidato a seminarista.

A ira do clérigo subiu mais alto quando se apercebeu que não podia aplicar o castigo da ex-comunhão por o taberneiro já estar mais que excomungado, restando-lhe como vingança proibir o Chiquito de ir à catequese, coisa que o pai nunca tinha feito por aquele respeito que o fazia ser uma pessoa respeitada por todos. Por todos, menos pelo padre, que teve de engolir em seco a troça do povo que não considerava roubo uma partida.

No dia 20 de Junho de 1974, Albino, quase padre, tendo tomado partido por causas revolucionárias, abandonou o seminário. Chegado à terra, dirigiu-se à taberna de Franscico Santos e pousou um saco de dez quilos de amêndoas em cima do balcão.

- Parece que tenho uma dívida aqui há muitos anos!...

- Aceito por respeito meu rapaz! Mas para bebermos os dois um copo parecem-me mais indicados uns tremoços!... Que pena tenho de não termos aqui um "kodak" para mandar uma fotografia deste momento para França! Aquilo é que o meu Chico ia gostar!...

10 comentários:

Anónimo disse...

Que bela história.
Se é ficção,parabens pela criatividade. Se é recordação,parabens pelo texto. Vale pela forma e pelo contúdo. Parabens.

Rogério G.V. Pereira disse...

Que conto!
Todos conhecemos um padre assim... um Torto como aquele... um Chiquito que partiu... um Albino que desistiu... e um Francisco Santos que, resistindo, não desiste. Sendo tão bem datada, presumo que esta história não terá sido inventada...

Maria disse...

Que estória tão... verídica... parece-me :)

Mar Arável disse...

Memória viva

Abraço

Anónimo disse...

Belo conto. É história ou recordação?

Anónimo disse...

Gostei! Mais iguais a esta, belas recordações.Quem é que as não tem...!

Zambujal disse...

És um contador. Excelente!

José Lopes disse...

Verdade ou ficção mas muito bem contada...
Cumps

Manuel Veiga disse...

muito bem contado
personagens vigorosas. plenas de autenticidade.

JFrade disse...

Cá está ele, o verdadeiro, o único, o incomparável Pata Negra!
Quem leu os folhetins do "Quarto" da "Fábrica" e outros (muitos) contos avulsos não estranha a qualidade desta história. Tinha é saudades.
Abraço.
JF