Era já tradição do longo priorado do prior Formiga, nos
modos, nos tempos e locais habituais, recordados em avisos do final da missa, fazer
a distribuição de amêndoas às crianças. Ao nosso lugar calhava, por costume, o
sábado da pascoela e o cabeço Leitão, local ermo e de mato alto mas onde o “carocha”
subia.
Chegado o carro, depois da espera ansiosa, o padre abria o
saco que trazia no banco do pendura e a canalha tomava posição de olhos
erguidos como os das galinhas quando se lhe dá milho. Não, não se fazia fila. Ele atirava macheias delas para o meio do mato,
tão longe quanto os seus lanços conseguissem, e ficava divertido a observar a
perícia de cada um e a avaliar quem apanhava mais. Quem tinha bolsos fazia por enchê-los,
quem os tinha rotos, alargava as meias para as juntar, quem não tinha meias,
sentia-as como pedras nos sapatos e o Torto, que nem sapatos tinha, picou-se.
O Chiquito, não foi na brincadeira e ficou com uma saca vazia na mão ao lado do lançador.
- Porque não fazes como os outros, meu menino?! Julgas-te
mais do que eles?! Vê-se bem de quem és filho! Vê-se bem que vens ensinado pelo
teu pai!
O silêncio de homem do Chiquito foi interrompido pelos
gritos do Torto.
- Piquei-me! Ai! Ai! Piquei-me! Ai que me dói! Ai o meu rico
pé! Ai o meu pézinho que me faz tanta falta!...
A gritadeira de dor mobilizou todos para junto da vítima, incluindo
o padre que, como é natural, dirigiu o socorro. Todos, menos o Chiquito que - tal como havia sido previamente combinado – aproveitando a distração geral, passou pelo
lugar do pendura, atestou em segundos a sua saca e despareceu discretamente sem dizer aqui
vou eu.
- Isso não é nada rapaz! Tens é de pensar em trabalhar para
arranjares dinheiro para uns sapatos!
O padre partiu sem dar pelo roubo e os outros ficaram espantados a olhar para o Torto que desatou a rir a bandeiras despregadas.
Francisco dos Santos, conhecido por não ir a missa nem à
confissão, mas respeitado por direito próprio, tinha estabelecimento
aberto onde vendia copos e dava tremoços. Naquele sábado também ofereceu amêndoas.
Não tardou muito que a marosca do Torto com o Chiquito
corresse o povo e, inevitável, fosse parar aos ouvidos do prior, alegadamente pela
fieldade de Albinito, pretenso santinho, candidato a seminarista.
A ira do clérigo subiu mais alto quando se apercebeu que não
podia aplicar o castigo da ex-comunhão por o taberneiro já estar mais que
excomungado, restando-lhe como vingança proibir o Chiquito de ir à catequese,
coisa que o pai nunca tinha feito por aquele respeito que o fazia ser uma
pessoa respeitada por todos. Por todos, menos pelo padre, que teve de engolir
em seco a troça do povo que não considerava roubo uma partida.
No dia 20 de Junho de 1974, Albino, quase padre, tendo
tomado partido por causas revolucionárias, abandonou o seminário. Chegado à
terra, dirigiu-se à taberna de Franscico Santos e pousou um saco de dez quilos
de amêndoas em cima do balcão.
- Parece que tenho uma dívida aqui há muitos anos!...
- Aceito por respeito meu rapaz! Mas para bebermos os dois
um copo parecem-me mais indicados uns tremoços!... Que pena tenho de não termos
aqui um "kodak" para mandar uma fotografia deste momento para França! Aquilo é
que o meu Chico ia gostar!...
10 comentários:
Que bela história.
Se é ficção,parabens pela criatividade. Se é recordação,parabens pelo texto. Vale pela forma e pelo contúdo. Parabens.
Que conto!
Todos conhecemos um padre assim... um Torto como aquele... um Chiquito que partiu... um Albino que desistiu... e um Francisco Santos que, resistindo, não desiste. Sendo tão bem datada, presumo que esta história não terá sido inventada...
Que estória tão... verídica... parece-me :)
Memória viva
Abraço
Belo conto. É história ou recordação?
Gostei! Mais iguais a esta, belas recordações.Quem é que as não tem...!
És um contador. Excelente!
Verdade ou ficção mas muito bem contada...
Cumps
muito bem contado
personagens vigorosas. plenas de autenticidade.
Cá está ele, o verdadeiro, o único, o incomparável Pata Negra!
Quem leu os folhetins do "Quarto" da "Fábrica" e outros (muitos) contos avulsos não estranha a qualidade desta história. Tinha é saudades.
Abraço.
JF
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