quinta-feira, 6 de abril de 2017

A minha primeira peregrinação a Fátima


Tinha onze anos, os mesmos que a Lúcia tinha quando começou a ter visões. A minha mãe não era muito devota das coisas de Fátima mas não teve volta a dar-lhe. Perante a minha insistência de querer ir na peregrinação da aldeia a Fátima, antes que o Diabo as tecesse, o melhor seria fazer-me a vontade porque, por detrás da minha vontade, poderiam existir vontades de Deus.

E lá partimos, por volta das cinco da manhã, doze peregrinos sendo eu o único homem. 

A mais velha ia pelo filho que andava na guerra em África e, não sendo mulher de promessas egoístas de prometer à Virgem não sei quantas idas a pé e voltas à capelinha se  o seu rapaz voltasse inteiro, ia para pedir à Senhora que o livrasse dos tiros dos pretos e o trouxesse saudável como ele sempre fora. Como a distância a Fátima a pé não lhe fizesse grande mossa, andar era como ela, muitos quilómetros fazia todos os dias, fez seu compromisso  ir calada, sem abrir pio todo o caminho.

Quando, ao fim de duas léguas andadas, se parou para a bucha, caçoada pelas companheiras com interrogações - vozes do Demónio em bocas de gente de Deus - ora fazendo má cara, ora sorrindo, não caiu em nenhuma provocação, não se lhe ouvindo verbo nem interjeição. Amoleceu bem o sal do pão com toucinho do seu farnel com dois e meio dos sete e meio que levava do seu vinho, dando de vencidas todas a tentações das primas e vizinhas que a queriam, escarnecidamente, ver descair-se com uma palavra.

Levantaram-se as mantas e os panos para continuar na estrada de piso de terra e mal composto e, num passo mal dado, uma  raiz exposta à superfície, despoletou tropeço, fê-la andar três dias a cair e, vai daí, ei-la estatelada no chão enlameado, sem tempo para pensar que tem de estar calada e a exclamar naturalmente, "carvalho  - ou "caralho!"(ao fim de tantos anos não me lembro do termo exato!) - do cachopo que me passou uma rasteira!".
- Eu?! - perguntei na minha inocência.

Ela levantou-se a rir e disse-me "menino, estava a brincar!" E,  invertendo o sentido dos seus passos, disse às demais:
- Rezem por mim que eu vou para casa que tenho por lá mais que fazer do que farei indo convosco. Não há-de ser por causa de uma carvalhada - ou "caralhada", (ao fim de tantos anos não me lembro do termo exato) - da sua mãe que o meu filho não há-de voltar são e valente!

E, virando-se para mim, lembro-me bem, disse-me exatamente assim:
- E tu menino, já que a Santa prefere ouvir meninos, exige-lhe que Ela acabe com a guerra, que Ela tem bem poderes para isso! 


4 comentários:

Milu disse...

Lindo!

Adorei essa sua expressão: " vozes do Demónio em bocas de gente de Deus". Como isso é tão verdade. O que nós vemos mais é mesmo vozes do Demónio nas bocas de gente que acredita muito em Deus.

cid simoes disse...

Está provado que não acaba com as guerras nem com as fábricas de armas do Vaticano.

Manuel Veiga disse...

não há como um bom tropeção (e uma boa caralhada) para a gente acordar!

Zambujal disse...

Arre porra... perdão... Ora bolas que isto é prosa da boa.
Além do mais, carago!