domingo, 29 de julho de 2018

A árvore que mais amei

Era uma figueira de porte que excedia a normalidade. Debaixo da sua copa só a hortelã se dava. Roubava espaço ao talho da horta e ao socalco das ervilhas, fazia sombra ao terreiro da nora e ao poço ao qual devia a sua frondosidade. Do seu tronco principal, que junto ao solo não se abraçava, nasciam vários ramos de diâmetro da largura dum tronco de criança, desses derivavam outros com grossura de perna ou braço de homem, desses outros de dedo polegar ou de mindinho, enfim, uma árvore, uma figueira grande.

Segredou-me minha mãe, um certo dia, que, quando eu era mesmo pequeno e ela tinha de ir tratar de coisas à vila, me deixava preso a ela com uma corda das ovelhas, me deixava uns cacos e uns cavacos para eu brincar, um naco de pão com marmelada dentro dum tacho para o guardar das formigas - vinte minutos para lá, vinte minutos lá, vinte minutos para cá, uma hora e eu permanecia sempre entretido sem uma lágrima no olho.
- Ai se fosse agora e alguém soubesse! Vinham os da Protetora e eu seria notícia, crucificada e julgada pelos adeptos das creches de vinte e quatro horas.

Já de idade maior e com habilidade de trepador, tratando da horta, mandava-me com uma saca colher figos. Então eu começava nos troncos principais, uns mesmo à mão, outros esticando-me, outros mais longe, onde um adulto nunca poderia chegar, as pontas da árvore a abanar, mas eu lá ia, recolher mais dois ou três, até onde houvesse ramos com força para me suportar.  Que bom era sentir-me macaco!
E, cheia a saca, descia e ia vitorioso mostrá-la à mãe que abria regos para os feijões.

- Desce a ladeira e vai dá-los à dona Henriqueta que não conheço pessoa que goste mais de figos pingo mel! Mas traz a saca!...
- Ai meu menino! Deus te pague! A tua mãe é uma santa!

Voltava ao quintal e "filho vai encher outra" e "ó mãe já está".
- Filho sobe o monte e vai levá-los à tia Engrácia ela vai ficar muito agradecida! Mas traz  a saca!
- Ai meu menino! Que Deus te pague! A tua mãe é uma santa!

Nova corrida, nova viagem, rica figueira, está carregada, "apanha mais uma para a tua avó! Mas traz a saca! "
Atravessar o Vale da Carreira, sempre a correr, a avó Gracinda:
- Meu santo filho que casou tão bem! Não tenho nada para te dar mas diz à tua mãe que eu lhe agradeço!

- Apanha só mais uma para a senhora Teodora, bate à porta e mostra respeito ao pedir a saca!
- Ó João Trinca Espinhas, a tua mãe é tonta, eu gosto deles é comidos da árvore, mas está bem, dá cá!
- A senhora gostava era de estar escarrapachada nos ramos a roçarem-lhe a crica!
(Há coisas que só se pensam e não se devem dizer ou escrever).

- Agora brinca! Não vás pró pé do poço, não saias da sombra da figueira, quando o sol se for chegará o pai.
Ele, pesado do trabalho, pesado demais para subir à figueira, punha-me às cavalitas, tira este ali, estão mesmo bons, vê se consegues agarrar aquele, ainda tem leite, olha aquele ali, que boa passa. E, já satisfeito, com peito para um bagaço, descia-me dos ombros, punha as mãos ao bolso e dava-me dois rebuçados de meio tostão.

Até que um dia, eu já maiorzito... amanhã vamos cortar a figueira, as raízes estão a dar cabo das paredes do poço, sem a sua sombra podemos ter mais dez regos de feijões e livrarmo-nos do mosquedo de setembro!

Então, com machados, machadas, serras, serrotes e pedoas, nos fizemos ao monstro e o despedaçámos. Custou-me muito, mais do que ver o avô a enterrar, ver o tio embarcar ou matar o porco!
- Esta lenha não vale nada, não chega aos pés do pinho ou do carvalho!
- Se é assim porque carvalho a traçamos e não a damos à cabra da dona Teodora?
- Que raio de ideia a tua, foste logo pensar na única pessoa do lugar que não tem gado e, além disso, as cabras só comeriam as folhas!

As figueiras nunca foram árvores amadas, talvez pela história de Judas, talvez pelas suas raízes atrevidas... mas os figos! ai os figos! chamava-lhe um figo! diz o povo e não por acaso!
E, ainda hoje, passados mais de oitenta anos, quando eu vou à terra para ver se os marcos estão no sítio, abeiro-me do poço para ver a altura da água, sinto o cheiro da hortelã que não sobreviveu à falta que a sombra da figueira lhe deixou e regresso a casa desejoso de figos pingo mel.



4 comentários:

Milu disse...

Adorei. Simplesmente adorei.

Também tenho a minha história com uma figueira, também ela muito frondosa e que dava uns figos de cor verde e muito grandes. Era a figueira de uma vizinha que tinha uma casa rodeada de quintais para onde a garotada ia brincar sempre que os donos se ausentavam.

A dona, reconhecendo que não podia fazer nada para evitar que fôssemos para lá, pedia-nos, ao menos, que apanhasse-mos somente os figos que ela não conseguiria apanhar, visto que seria necessário subir a grande árvore e ficar escarranchado nos ramos, que também nos serviam de baloiço. É que com os impulsos os ramos sobem e descem sem se partirem! Bons tempos. Apesar da pobreza, da falta de quase tudo.

Brinquei tanto!

Agora que estou a falar nisto dei conta de um pormenor. Actualmente, devo ter a idade que essa senhora, minha vizinha, tinha. Talvez até eu seja mais velha, mas ao contrário dela, que era corpulenta, tipo elefante, com uma vida sedentária pois não fazia qualquer tipo de exercício físico, eu sou perfeitamente capaz de subir uma figueira e apanhar figos. Quem diz uma figueira diz outra árvore. Formas diferentes de estar no mundo...

Também conheço uma história similar à sua, de quando a sua mãe o prendia à figueira. Tive uma vizinha que deixava o filho preso durante toda a tarde enquanto ia trabalhar. Assim evitava que ele andasse solto connosco, ou seja, comigo e com os meus irmãos a "fazer mal" por onde calhava. Este "fazer mal" da nossa parte tinha a ver com as nossas brincadeiras de meninos ladinos, que invadiam quintais e o que calhasse, porque crianças saudáveis alguma coisa têm de fazer durante o dia, ou não? "Roubar" fruta do quintal desta vizinha era uma dessas maldades. Então a mãe do miúdo, que também era costureira, daí a ideia do uso de uma linha de cozer, com a qual prendia o filho à perna da mesa onde faziam as refeições, com vários nós, impossíveis de desfazer. Na primeira vez o infeliz ainda lá ficou naquele calvário. Mas, na segunda vez, vi o meu irmão a olhar para aquilo e a coçar o queixo, prenúncio de que estava efectivamente a pensar e, vai daí, com cautela, foi descendo o laço feito com a linha à volta da perna da mesa até este sair. Prendeu-se a linha na perna do miúdo e partimos para a aventura. Quando estava a chegar a hora da mãe vir do trabalho enfiou-se o laço pela perna da mesa. E fomos fazendo aquilo todas as vezes :D

Pata Negra disse...

Milu,
Também adorei o seu comentário. Seremos da mesma cepa e obra da mesma figueira?
Bjs.

Zambujal disse...

sabe tão bem (chamo-lhe "um figo") ler prosas destas antes de desligar ocomputadir e encerrar o expediente.
Obrigado. Um abraço

cid simoes disse...

Mas 'plantar uma figueira' é dar um trambolhão, os pingo de mel estão a caminho e são uma delícia, mas gostar, gostar mesmo foi do que escreveste.