Sim, já o dissemos, pelo sim pelo não, queixara-se nos últimos dias aos colegas de trabalho que não andava bem, o fígado, os rins, o coração, eu sei lá o que é, até que ao terceiro dia disse-lhes a eles e ao patrão:
- Amanhã tenho de ir ao médico, não sei
o que é que se passa comigo.
- De madrugada vais ligar para o 112, vou
queixar-me de dores pelo corpo todo e vais fazer questão de me acompanhar com
os bombeiros até ao hospital. Aí chegados, chamarás um táxi e eu arranjarei
maneira de me escapulir, rogando pragas ao atendimento das urgências. Sairei representando
uma cena “para inglês ver” e entrarei no carro, “leve-nos a Lisboa que estes
gajos aqui estão-se a lixar para mim, eu pago-lhe todo o dinheiro que tenho,
leve-me daqui!”
- Então e aqui não vem a velha questão de não teres dinheiro para pagar ao taxista?
- Quando eu digo pago-lhe todo o dinheiro que tenho, é isso mesmo, vamos dar-lhe todo o dinheiro que temos, se não chegar ele que se amanhe, porque com os pés em Lisboa, correremos pela rua onde ele nos deixar e, aí sim, a pé ou com bicicleta roubada, haveremos de encontrar o nosso destino.
- Então e aqui não vem a velha questão de não teres dinheiro para pagar ao taxista?
- Quando eu digo pago-lhe todo o dinheiro que tenho, é isso mesmo, vamos dar-lhe todo o dinheiro que temos, se não chegar ele que se amanhe, porque com os pés em Lisboa, correremos pela rua onde ele nos deixar e, aí sim, a pé ou com bicicleta roubada, haveremos de encontrar o nosso destino.
Já farta de ser rica, sem ver tostão, rendeu-se ao plano do marido.
Passaram a noite inteira a repetir os detalhes da história que iriam contar, cada
um com seu papel bem ensaiado.
Representada a cena da ambulância e do hospital, deram por si no táxi a caminho de Lisboa. Durante a viagem, ele suava e tremia, mais de nervoso que de doença. A mulher apertava o boletim na mala como se levasse um santo milagroso. Todo o trajeto foi uma longa sucessão de pensamentos silenciosos, ele perguntando-se se não estava a cometer um erro de estratégia, ela imaginando o que os esperava.
Representada a cena da ambulância e do hospital, deram por si no táxi a caminho de Lisboa. Durante a viagem, ele suava e tremia, mais de nervoso que de doença. A mulher apertava o boletim na mala como se levasse um santo milagroso. Todo o trajeto foi uma longa sucessão de pensamentos silenciosos, ele perguntando-se se não estava a cometer um erro de estratégia, ela imaginando o que os esperava.
- Deixe-nos no centro que a gente desenrasca-se.
- Lisboa tem centro?
- No Rossio.
- No Rossio não conheço nenhuma clínica.
- Não conhece mas há.
- O senhor está bem?
- Se estivesse bem não tinha fugido das urgências!
- Os senhores é que sabem!
- Quanto é que o senhor nos vai levar?
- Tenho de fazer as contas. 200 euros?
- Tanto!
- Os senhores vieram de taxi, não vieram de burro!
- Mas nós não temos esse dinheiro!
- Só me faltava esta!
- Fique com o meu número de telefone que depois pago-lhe!
- Isso é que era bom, chamo a polícia!
- Ok, antes na prisão do que no hospital!
- E é já aqui no Marquês, deixem-se ficar dentro do carro que eu vou falar com aquele polícia!
- Que taxista mais burro!
E ó pernas pela avenida abaixo e o burro do taxista a perdê-los de vista, a perder o seu belo, de paciência perdida, perdido...
E perdidos também, numa Lisboa às vezes indiferente, às vezes avessa, marido e mulher, sentiam-se como peixes fora da água. O ruído, o movimento constante, a pressa nas ruas — tudo os assustava. A mulher apertava a mala contra o peito, como se o boletim pudesse evaporar-se a qualquer momento. O marido olhava para todos os lados, desconfiado de cada figura que se cruzava com eles. Perguntamos a quem? Perguntamos o quê? Como encontrar alguém que inspire confiança? Que pergunta fazer para não fazer desconfiar?
- O senhor pode-me dizer onde fica a Santa Casa da Misericórdia que eu tenho de meter o totobola?
- Mas não precisa de ir à Santa Casa para fazer isso, olhe ali aquele quiosque!
- Mas eu faço questão de o meter lá, é mais certo, não será tão fácil levar descaminho!
- O senhor é que sabe, desça pelo lado esquerdo até encontrar uma porta que diz Santa Casa. Mas olhe que eu acho que lá não dá para jogar, creio que é só para receber prémios!
- É isso mesmo!
O informador ficou com um olhar interrogativo mas seguiu o seu caminho, e o Jacinto foi a ouvir das boas da Francisca pela avenida abaixo:
- É isso mesmo! É isso mesmo!...
Troçava ela deveras irritada pela forma como o marido se descaiu em plena cidade. De vez em quando olhavam para trás para confirmar que o homem não vinha no seu encalço.
2 comentários:
O que já me ri com o enfado da mulher: "Já farta de ser rica, sem ver tostão". Eheheheh
Tanta coisa para despistar os futuros pedincheiros que lhe aparecessem pela frente, caso levantassem suspeitas lá na santa terrinha, e esqueceram uma coisa importantíssima.
Isso no caso na mulher não se ter enganado ao conferir os números do seu boletim.
É que sabe-se sempre em posto o prémio sai e o desaparecimento deles vai ser a prova provada...lá se lhes vai sossego!
Só por pensar em tais aflições é que eu raramente faço o Euromilhões...e nessas raras vezes perco sempre 2€ e 50 cêntimos....
Um abraço para o Monarca e boa sorte para a Francisca e pró Jacinto. : )
Acho que tudo isto vai terminar
com violência doméstica
ou com a falência da Misericórdia
(claro que não me refiro à instituição)
______________
Tinha a esperança de te encontrar a dares um abraço ao Veiga
______________
Abraço
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