Quando o
Pisca-pisca parou o carro e se apercebeu quem era a cliente, ficou com cara de
tomate mas saiu do embaraço como pôde:
- Aquele Abílio vai
pagar-mas, porque não me disse ele que eras tu!?
- Fui eu que lhe
pedi, sabia que ias gostar desta surpresa!
A cara de tomate
diluia-se nas rosáceas associadas ao exagerado consumo de cerveja, vinho e
aguardente. No resto do dia, foi-se adaptando ao incómodo de ir ouvindo, em
suaves prestações, a história da prisão de Jacinto. Surpreendia-o a naturalidade,
para não dizer o prazer, com que Francisca relatava toda a história da prisão e
do crime do companheiro de sempre.
A certa altura começou
até a ficar convencido de que ela, agora sem o Jacinto, estava a precisar de
peso e o desejava. Daí o pretexto do frete excecional, que preencheria toda a
tarde e ainda incluiria o percurso até à casa de praia que, não saberia ela,
mas ele conhecia.
Sabia, sabia, os
videoporteiros modernos com gravador têm destas coisas, coisas de ricos! Ao
longo da tarde foi descascando o “tomate”, com informações falsas e pequenas provocações:
“sabemos que foi alguém daqui que fez a denúncia”, “como souberam que ele
vendia erva de Marrocos e folhas da Colômbia é que eu não sei”, “o Abílio disse-me
que não sabe quem foi mas desconfia”, “às tantas estou para aqui com coisas e
tu sabes quem foi”, “já pensei no Jápintas!”, “vizinhos para quem ele andou lá
a pintar há uns tempos, disseram-me que o viram a rodear a minha casa com
outros dois”, “estou-me nas tintas para quem foi, o que interessa é que
ganhámos bom dinheiro com o negócio e não tarda muito ele está cá fora outra
vez!”
O desgraçado do
taxista foi toda a tarde um autêntico farrapo nas mãos da conversa da tagarela
reinante. Valeu a Francisca este divertimento oportuno para compensar a
tristeza que de outro lado lhe vinha.
A sucessão de
pequenos atos e diálogos que envolvem a despedida definitiva dum local onde se
viveu por muitos anos, pode provocar transitoriamente estados de profunda
tristeza, de choros incontroláveis, de saudade do passado recente ou até do
presente. E nem sequer importa se partimos desta para melhor – salvo seja! -
passam por isso os soldados quando passam à disponiblidade, os presos quando
são libertados, os doentes internados quando têm alta, os emigrantes quando
voltam de vez. O arrumar das botas e das malas, o embarque, os abraços, os
adeuses, doem sempre muito, mesmo quando se deixam espaços onde não se foi
feliz e se sofreu.
Francisca, por
história de vida ou pelo menos por aparência, era uma mulher de armas e de sensiblidade
robusta e viajou para esta despedida com a predisposição de quem vai ao mercado
ou à feira, pelo que, foi apanhada de surpresa pelas lágrimas que por várias
vezes, ao longo do dia, sozinha ou em companhia, expostas ou discretas, lhe
irrigaram o semblante.
Quando, ao fim da
tarde, deu ordem de partida ao Pisca-pisca e o táxi arrancou do largo da estação,
correspondeu, através dos vidros do carro, aos acenos de adeus que Abílio
desenhava, firmemente posicionado no portal de entrada do seu estabelecimento. Soltou
um soluço final e dirigiu o olhar vazio para a estrada que se abria à sua
frente, ignorando que ao seu lado havia um condutor que, apesar de todas as
contrariedades, apesar de a ter acusado injustamente, ainda sonhava que ela o
mandasse entrar quando chegassem à casa rica, que lhe oferecesse uma bebida e lhe
abrisse a cama.
Enganou-se bem porque
ninguém engana a Francisca. A sensibilidade feminina cheira à distância os
desejos dum homem e foi assim que conseguiu um preço muito em conta, ao
perguntar por contas antes de chegarem.
- Pode não ser
nada, tudo depende do que tiveres em casa para me dares!...
Ela respondeu com
um silêncio de desprezo e vingança que bateu com crueldade os intentos do
macho.
Chegados ao
destino, abriu a porta para ele descarregar na entrada a tralha que trazia,
pagou-lhe sem gorjeta, deu-lhe um aperto de mão e, em tom de boa disposição,
deixou-o ir com uma frase laminar de despedida:
- Espero que nunca ninguém
ligue para a polícia a bufar que andas a conduzir com álcool.
Os candeeiros da
rua iluminaram um tomate prestes a rebentar, protegidos da luz, os outros dois
tomates desfizeram-se e engelharam as peles, nem sequer teve coragem para sair
logo de Pedra de Ouro, desfeita a fezada, estacionou o carro junto a um arvoredo
e dorminhicou umas horas para perder umas gramas.

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