domingo, 10 de agosto de 2025

29- A incrível vida do casal ganhador do euromilhões

 


Quando o Pisca-pisca parou o carro e se apercebeu quem era a cliente, ficou com cara de tomate mas saiu do embaraço como pôde:

- Aquele Abílio vai pagar-mas, porque não me disse ele que eras tu!?

- Fui eu que lhe pedi, sabia que ias gostar desta surpresa!

A cara de tomate diluia-se nas rosáceas associadas ao exagerado consumo de cerveja, vinho e aguardente. No resto do dia, foi-se adaptando ao incómodo de ir ouvindo, em suaves prestações, a história da prisão de Jacinto. Surpreendia-o a naturalidade, para não dizer o prazer, com que Francisca relatava toda a história da prisão e do crime do companheiro de sempre.

A certa altura começou até a ficar convencido de que ela, agora sem o Jacinto, estava a precisar de peso e o desejava. Daí o pretexto do frete excecional, que preencheria toda a tarde e ainda incluiria o percurso até à casa de praia que, não saberia ela, mas ele conhecia.

Sabia, sabia, os videoporteiros modernos com gravador têm destas coisas, coisas de ricos! Ao longo da tarde foi descascando o “tomate”, com informações falsas e pequenas provocações: “sabemos que foi alguém daqui que fez a denúncia”, “como souberam que ele vendia erva de Marrocos e folhas da Colômbia é que eu não sei”, “o Abílio disse-me que não sabe quem foi mas desconfia”, “às tantas estou para aqui com coisas e tu sabes quem foi”, “já pensei no Jápintas!”, “vizinhos para quem ele andou lá a pintar há uns tempos, disseram-me que o viram a rodear a minha casa com outros dois”, “estou-me nas tintas para quem foi, o que interessa é que ganhámos bom dinheiro com o negócio e não tarda muito ele está cá fora outra vez!”

O desgraçado do taxista foi toda a tarde um autêntico farrapo nas mãos da conversa da tagarela reinante. Valeu a Francisca este divertimento oportuno para compensar a tristeza que de outro lado lhe vinha.

A sucessão de pequenos atos e diálogos que envolvem a despedida definitiva dum local onde se viveu por muitos anos, pode provocar transitoriamente estados de profunda tristeza, de choros incontroláveis, de saudade do passado recente ou até do presente. E nem sequer importa se partimos desta para melhor – salvo seja! - passam por isso os soldados quando passam à disponiblidade, os presos quando são libertados, os doentes internados quando têm alta, os emigrantes quando voltam de vez. O arrumar das botas e das malas, o embarque, os abraços, os adeuses, doem sempre muito, mesmo quando se deixam espaços onde não se foi feliz e se sofreu.

Francisca, por história de vida ou pelo menos por aparência, era uma mulher de armas e de sensiblidade robusta e viajou para esta despedida com a predisposição de quem vai ao mercado ou à feira, pelo que, foi apanhada de surpresa pelas lágrimas que por várias vezes, ao longo do dia, sozinha ou em companhia, expostas ou discretas, lhe irrigaram o semblante.

Quando, ao fim da tarde, deu ordem de partida ao Pisca-pisca e o táxi arrancou do largo da estação, correspondeu, através dos vidros do carro, aos acenos de adeus que Abílio desenhava, firmemente posicionado no portal de entrada do seu estabelecimento. Soltou um soluço final e dirigiu o olhar vazio para a estrada que se abria à sua frente, ignorando que ao seu lado havia um condutor que, apesar de todas as contrariedades, apesar de a ter acusado injustamente, ainda sonhava que ela o mandasse entrar quando chegassem à casa rica, que lhe oferecesse uma bebida e lhe abrisse a cama.

Enganou-se bem porque ninguém engana a Francisca. A sensibilidade feminina cheira à distância os desejos dum homem e foi assim que conseguiu um preço muito em conta, ao perguntar por contas antes de chegarem.

- Pode não ser nada, tudo depende do que tiveres em casa para me dares!...

Ela respondeu com um silêncio de desprezo e vingança que bateu com crueldade os intentos do macho.

Chegados ao destino, abriu a porta para ele descarregar na entrada a tralha que trazia, pagou-lhe sem gorjeta, deu-lhe um aperto de mão e, em tom de boa disposição, deixou-o ir com uma frase laminar de despedida:

- Espero que nunca ninguém ligue para a polícia a bufar que andas a conduzir com álcool.

Os candeeiros da rua iluminaram um tomate prestes a rebentar, protegidos da luz, os outros dois tomates desfizeram-se e engelharam as peles, nem sequer teve coragem para sair logo de Pedra de Ouro, desfeita a fezada, estacionou o carro junto a um arvoredo e dorminhicou umas horas para perder umas gramas.

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