domingo, 18 de outubro de 2015

Toda nua





Por motivos de ordem diversa, desavenças familiares, desintegração social, pecados mortais, golpadas no alheio e razões outras, existem pessoas que, num dado momento das suas vidas, desaparecem da comunidade onde vivem, nunca mais dando sinais de si, acabando por ser esquecidas ou, no máximo, por serem o sujeito ocasional duma conversa com um “que é feito dela?”.

Ela vagueou pelas ruas da aldeia dispersa, ora em passo normal,  ora em passo de corrida, parando aqui e acolá, fixando-se  num, fugindo de outro, parada por uns, corrida por outros, completamente desvairada ou, na fala de alguém, como uma égua louca ou como uma vaca numa largada de Alcochete. 
Completamente nua. Sem crítica que lhe se pudesse fazer ao corpo, ou não fosse uma rapariga na idade em que as formas perfeitas são a regra e tudo é bonito de ser ver, apesar da circunstância não permitir a concentração em pormenores nem provocar desejos, se não mesmo os da curiosidade ou o prazer de ser testemunha dum insólito acontecimento.

Não são para contar os comentários esperados para a cena, todos os advinham, que se ilustre a mesma apenas com esperadas reações:

A professora mandou os alunos que estavam no recreio para a sala, uma beata fez o sinal da cruz e entrou na capela, alguns taparam os olhos com os dedos mal unidos, uma mulher deu um calduço no marido, uma mãe tapou a visão do filho com o chapéu, uns riram, outros lamentaram e, no entanto, era apenas uma mulher como Deus a pôs ao mundo! Apenas com mais umas sapatilhas! Também, ninguém quereria que andasse descalça no piso com pedras e poças e bostas dos caminhos do campo!

O ato de loucura foi aparado pela residente na última casa do lugar, solteirona solitária, conhecida por mulher solidária e carinhosa, inclusive com alguns maridos insatisfeitos, que lhe deu a mão, que lhe tapou as vergonhas com o que tinha à mão, levando-a para dentro e aguardando que alguém da família viesse ao socorro.

E o pai veio. Industrial de sucesso como se apresentava no meio, proprietário do carro que por ali mais circulava, conhecedor dos afetos da casa, encetou cumplicidade com a protetora para abordar com cuidados a protegida assustada e, preparada a partida, entregou razões que, dali declaradas, iriam de boca em ouvidos e de ouvidos em boca, correndo o povoado e quebrando  a má língua do juízo popular:

Fazia dois anos que fora estudar advocacia para a cidade grande, poderia ter sido de estudar muito, poderia ser droga dura que os do 25 de abril lhe deram, poderia ter sido o diabo que a tomou, o que não havia dúvidas é de que perdera a lucidez mas nada que um bom médico, um bom corretivo ou a Santa da Ladeira não pudessem curar.

 Na sequência do episódio, já lá devem ir quarenta anos, a moça - ninguém esperaria que aqui se dissesse o nome dela -  deixou de se ver e nunca mais alguém ousou perguntar ao pai “que é feito dela?”. 

Aconteceu recentemente ser recordada, por ter sido reconhecida num canal de televisão, prestando declarações numa manifestação contra as touradas.
Boca pouco brejeira dum popular brejeiro:
- Está perdoada, pelos vistos está arrependida!


- Ou terá sido apenas a manifestação dum sonho revolucionário de pureza, duma jovem que legitimamente quis testar “porque raio a nudez perturba as pessoas?!”.

6 comentários:

cid simoes disse...

O Rei é mestre nestes flashs.

O Puma disse...

Que viva o rei

dos leitões

Abraço

José Lopes disse...

Sempre em boa forma...
Cumps

zambujal disse...

Muito bom. Obrigado, amigo.
Escreve, por favor. SEMPRE!

Manuel Veiga disse...

sem sombra de pecado...

nem mácula a tua escrita.

abraço

salvo com falta de conduto disse...

Porque raio a nudez perturba as pessoas? Homessa, porque mexe coa gente, sempre mexeu, por muito que digam, nada fica estático à nudez, principalmente a feminina, a masculina mexe mais cos "passarinhos".

Ninguém, é que ninguém fica insensível, se dizem o contrário, mentem. Eu que num minto, logo mexo, aqui a correr vim quando a propósito de uma busca num motor da dita me deparei: Rei dos Leitões - TODA NUA! Parecia um título do Jornal do Crime ou notícia daquelas com que agora as tvs nos bombardeiam nos principais jornais do dia. Que é que estavas à espera? Vim logo a correr. Só não percebi lá muito bem a história do touro, uhmm, não é por nada, mas com a azia que estou até eu cravava uma bandarilha no raio do bicho que me estragou a noite. Pró que me deu, ligar a televisão àquela hora?...