Antes das pedras chegarem à calçada, depois das máquinas grandes arrancarem ao coração da serra grandes blocos, existem homens que, com martelos grandes e pequenos, formam um a um os paralelepípedos que pisamos. É vê-los à sombra dum chapéu de praia em alguns sítios de Reguengos da Serra, era vê-los ganhar muito dinheiro ainda há poucos anos.
Um deles teve um filho que, de sempre o acompanhar e de outros jeitos, lhe deu para com escôparos, ponteiros e outras máquinas começar, de pequenino, a mondar a pedra e a dar-lhe formas vivas.
Quando, de liceu pronto, manifestou à mesa o desejo de ir para belas artes - o pai, "ainda se fosse para médico, advogado ou engenheiro!"; a mãe "ainda se fosse para padre! mas está bem! deixemo-lo tentar a sua vontade!" - lá foi ele com a curta rédea-mesada para a escola superior.
Ainda estudante, haveria de montar oficina no estábulo abandonado do avô e conseguir até vender alguns trabalhos, fazer orgulho à mãe, "meu filho vai ser artista!", e pôr o pai de pé atrás, "com tanta massa gasta e rebarbadoras estragadas, mais valia ele começar a pensar em desistir dos estudos e fazer-se à serra que isto é duro mas ainda vai sendo seguro para sustento!".
E a contradição entre o casal teve seguimento quando foi inaugurado, no largo da capela, um monumento em pedra que consistia num paralelepípedo de dois de altura, por meio e meio de base, com uma gravação em baixo relevo de dedicatória às gentes de Reguengos que já partiram. Em contraponto, conseguiu então o jovem, em fim de curso, receber autorização do presidente da junta para, no largo da sua rua, enquadrar uma escultura ilustrativa do homem que faz as pedras para a calçada. A mãe pediu o aval de toda a vizinhança e o pai justificou-se a todos: "aquilo não tem jeito nenhum mas o que é que um homem há-de fazer?!".
Embora sem o entusiasmo da populaça a obra lá ficou e, já formado, o artista não teve outra sugestão senão ir criar para outro lado. E fez sucesso! Os seus trabalhos começaram a ser apreciados e bem pagos e o seu nome a constar em publicações da especialidade; a mãe-raiz a atirar "vês?!vês?!", o pai-tronco a render-se ao peso dos frutos que sempre subestimou; os santos da terra a resistirem ao seu reconhecimento, a evitarem o assunto nas conversas e a fingirem ignorar.
Viraram-se todos os silêncios e juízos quando foi notícia e o primeiro nome, seguido do apelido de raízes locais, foi pronunciado no telejornal como autor da estátua que o presidente da república recém-empossado encomendara para homenagear o seu antecessor.
E, assim vista a inauguração na televisão, com o tirar do pano e os aplausos, com nome do escultor a passar em rodapé, o filho da terra ganhou então valor! Programou-se até um jantar de homenagem quando ele fosse lá pelo Natal.
Nas imagens podiam ver-se a cara de babado do esculpido a pensar "sou estátua!", o olhar do sucessor a acenar-lhe "ideia minha! sou porreiro" e os devotos presentes a salvarem o vazio da cerimónia com o dever das palmas.
Mas eis que passados dias, ou porque certos comendadores tivessem recolhido informações de que o autor da obra não jogava no mesmo baralho, ou porque certos comentadores assegurassem que não jogava com o baralho todo, ou porque certa imprensa humorística tivesse dito que a escultura parecia uma múmia em acentuado estado de petrificação, ou porque toda a gente viu dois presidentes nus, ou porque os verdadeiros artistas estão condenados a serem incompreendidos pelo grosso dos seus contemporâneos, gerou-se um rebuliço fenomenal de opiniões e o monumento desapareceu do fundo da avenida. Se foi mandado retirar ou foi roubado, ninguém se esforçou por apurar, ninguém quis prestar declarações e os jornalistas do regime escolheram a discrição.
Mas em Reguendos foi mais do que falado. Quando em dezembro, o filho da terra voltou à serra amada, o seu monumento de estimação, do largo da sua rua, vandalizado, era um monte de pedras, boas para reciclar para calçada.
No entanto, ele continuou o seu caminho e a sua arte, nunca mais deu mostras do seu trabalho aos aldeões e passou a recusar todos os prémios e medalhas. Num dia histórico para a freguesia, o presidente da junta convidou o presidente da república para conhecer e promover as pedras por que a terra devia ser conhecida. Cortou-se uma fita, bateram-se palmas. Falou-se dele, ele não estava, parece que estava na festa de aniversário dum amigo de infância! Apagaram-se umas velas, beberam-se uns copos e falou-se da Arte, o Artista e a Sociedade.
4 comentários:
Ah se as pedras falassem...
diriam que quem as parte, partem
porque ninguém as compra
e os que as compra
tarde as paga
e arte
fica mais pobre
e quem a trabalha
tem igual sorte
"a fazer pedra p´ro monte" andamos todos.
gosto destes "Caetanos"...
M.V.
Ah se os anónimos se esfumassem...
(era tão bom!)
Antes pedras que calhaus
Que não se calem as pedras com vida por dentro
Enviar um comentário