terça-feira, 1 de maio de 2018

Vai amanhã a enterrar a minha tia Anselma

Património da terra, a tia Anselma, vai amanhã a enterrar. Do leito da agonia, o mesmo onde dormiu todos os seus sonos desde que se fez moça, nem uma única pernoita fora daquela cama se lhe conta, disse-me isto assim:

- Abre aí essa gaveta, julgo que está aí dinheiro que chegue para não teres de entrar para o meu enterro. Se não chegar... olha, amanha-te! Se sobrar para um ramo de flores, que seja de cravos, acho que os mereço! Sei que não és de missas, por isso, se não houver padre, descansa, não me vou levantar!

Os pequenos, na idade em que se iniciavam na palração, não tendo língua para dobrar o nome Anselma, chamavam-lhe An e, os maiores, corrigiam-nos, completando com acentuação as sílabas em falta: - ... sel-ma! Mas foi assim, como se dum acordo de gerações se tratasse, que acabou por ficar An para os mais novos e para os mais velhos, Selma.

Por condição de solteira, mais tarde solteirinha e, a partir de certa altura, por correção sua quando a referiam nestes termos, assumidamente solteirona, ficou, por herança, com a casa dos pais, meus avós.
Com o andar dos anos, o espaço outrora cheio, foi perdendo a vida, as crianças, os animais, as arcas e as pipas cheias, as vizinhanças, até ficar só ela com mais meia dúzia de velhos enviuvados, os residentes do lugar. Enquanto teve forças, virou a terra, fez a burra carregar a palha que comia, escorou as capoeiras que ameaçavam desabar, substituiu telhas partidas, regou a horta, as hortenses e sardinheiras, caiou os muros, acendeu o forno, fez a sopa e cinco almudes de pinga por ano. 

Aos sete anos, a casa era-me de tal modo familiar que eu entrava cozinha dentro, sentindo os pés pegarem-se às tábuas sebosas, fazendo vistas largas à loiça suja e o nariz estreito ao cheiro a fumo e dizia:
- Tia An, tenho fome!
Então ela arranjava-me um naco de pão com tanta marmelada como se gastava na minha casa numa semana.

Aos doze anos, a tia An solicitava préstimos meus e dava-me em troca uns trocos que me davam jeito para comprar costelas para os pardais e fitas para os punhos da bicicleta.

Aos dezoito anos, comecei a tomar consciência do modo de ser da tia An. Teria sido, mais jovem, bonita e jeitosa, ainda era bonita e jeitosa, mas o vestuário austero, o cabelo sem cuidados, o semblante geométrico, davam-lhe um ar neutro, o ar duma pessoa que nunca surpreendia,  conformada com o destino de apenas ter de trabalhar para sobreviver.

Aos vinte e quatro anos, comecei a interrogar-me acerca da filosofia de vida da tia An. Limitada ao seu quinhão rural, na missa era mulher dos lugares do fundo, não tinha rádio nem televisor, era de conversas limitadas ao essencial, nunca dando largas a assuntos banais, era generosa mas não aprofundava grandes relações e escolhera-me como seu familiar de estimação.

Aos vinte e oito anos, quando a fui convidar para o meu casamento, tivemos a conversa das nossas vidas. Agradecia o gesto, aliás meu dever, mas saberia eu que não iria, não por não ter roupa, não a envergonhava o seu fato domingueiro, não por não ter dinheiro, saberia bem que eu não lhe cobrava a presença, mas porque não lhe apetecia e sabia bem que eu não a julgava, que comprasse eu os sapatos que quisesse que ela os pagaria.

- Ora essa tia An! Trar-lhe-ei o talão! Pena só tenho de não ter ido ao seu!
- Ó rapaz, não penses tu que não tive namorados! Dois! Um sabia bem o que ele queria e o outro o que ele queria sei eu!...
E então, dito isto,  divagou sobre si própria, a sua opção de não viver para satisfazer os caprichos ou desejos dum homem peludo e de hálito vinhateiro, de gostar de viver sozinha, da vida que levava, surpreendendo-me com uma confidência que me fez corar como se de repente se tivesse despido à minha frente:
- Homem?! Eu tenho mãos para ganhar a vida e tenho dedos para me desenrascar!

Até anteontem continuei a visitar regularmente a tia An. Acompanhava-me sempre ao carro com umas batatas ou umas cebolas, uns ovos ou umas maçãs, uma galinha ou um coelho. Falávamos à volta da lareira se fosse inverno, no sobrado se fosse verão:

Foi uma vez a Fátima, jurou para nunca mais. A Coimbra nunca foi, nem sequer para fazer uma colonoscospia. Nos anos sessenta foi uma vez numa excursão à Nazaré. Dos carros tinha medo, a televisão para ela era bruxedo, telefonar só se fosse para os bombeiros, 25 de abril, sempre! votar só uma vez e foi na foice e no martelo, às Festas do Bodo se lá te apanho lá te... e ria, ria...

A tia Anselma vai amanhã a enterrar. Tentei encontrar padre para a encomendar, não consegui mas estou confortado com o facto dela não se importar. Comigo vai estar uma meia dúzia de pessoas. Nem uma lágrima se verterá. Durante uma semana outros saberão da morte dela e é natural que dela se vá falar. Feito o orçamento da agência acho que ainda me vai sobrar algum. Daqui a uns meses aparecerão os meus primos e vai haver desentendimentos sobre montes que nada valem e montantes que deveriam existir. Daqui a uns anos ninguém saberá quem foi a última moradora, nem quem são os donos da casa dos meus avós que estará em ruínas.

Se nunca teve uma causa maior pela qual lutasse, se não era de crenças, se não deixou descendência, se não deixou obra que lhe lembre a vida, se nunca viajou, se nunca partilhou a cama para se dar ou possuir e aos outros disse nada, o que deixou a cidadã Anselma que se diga com humanidade que valeu a pena?

Ela mesmo disse do seu leito de agonia, que foi um instante e não dois dias como é hábito dizer-se, que nem ao padre alguma vez se dobrou ao arrependimento, que foi feliz sem homem e sem outra criação que não fosse as das suas cabeças e tomates e que ficaria morta em paz sem alguém que lhe velasse a sepultura.

E eu mesmo digo, continuar-se-á a respirar o oxigénio das árvores que plantou, comer-se-ão as filhas das filhas das filhas das crias que criou, ninguém poderá assegurar que o cabrito no forno que irá comer um ano destes pelo Natal não teve como antepassado uma cabrão que ela guardou, nem eu sei quando se esvairão no ciberespaço os significados deste texto que dela fala e conta. A sua vida foi tão importante como a de milhões de servos, nobres  e eremitas que já morreram e dos quais não há uma única lembrança. A sua vida valeu tanto e tão pouco como a de qualquer um.

Serena, Anselma, património da terra, vai a enterrar amanhã.


4 comentários:

cid simoes disse...

Li com muito gosto. Obrigado!

Zambujal disse...

Um abraço daqui!

Maria disse...

Outro abraço daqui.

Judite Castro disse...

Mais um abraço deste lado.
Conseguiu comover-me: irmãs e tias que só cuidaram dos outros também há por cá.