Digamos que
é mesmo muito dinheiro e que, pelo que pensava Francisca quando há pouco a
deixámos na sua cama da casa de Pedra de Ouro (Aproveitamos para anunciar que a
casa está à venda – 965347974) – a maior parte dele descansará por muitos anos
nos cofres virtuais da banca capitalista.
Dentro de
dias, Francisca chegará de malas cheias a Vila Facaia, voltará a juntar os
trapinhos com Jacinto, viverão como dois emigrantes que regressaram de vez do
Canadá ou da Austrália - já nem se recordam de onde disseram que foi! - com um valente pé-de-meia. Juntos,
cuidarão da sogra e do cunhado, viverão.
Para trás,
ficará a casa de Vale dos Ovos entregue às silvas, a casa de praia entregue a
uma imobiliária, o papa-reformas vendido a um pescador. Para trás, só não
ficarão os bancos porque eles, tal como Deus, estão em toda a parte.
Dito e
feito, vamos agora viver no Pinhal Interior (digo Eucaliptal Interior), casamento renovado e casa nova com
Jacinto, amanhã vamos a Pedrogão ao Registo, no outro dia podemos ir à Sertã
comer maranhos, ontem foram à praia fluvial das Rocas, foram a banhos, sempre de táxi,
estão bem na vida - vê-se! - trabalharam para isso toda a vida - pensam os santos da terra! - temos de ir com a velhota
a um médico à Pampilhosa, amanhã vamos à feira a Castanheira comprar um pijama
para o teu irmão, ontem foram a um jantar da Associação, deram um generoso
contributo, hoje estão numa de descanso, estão bem na vida mas…
Mas, há um
erro grave que aqui se cometeu. Se fosse da parte do autor, haveria perdão, mas
não, são Francisca e Jacinto que estão a cometer uma falha imperdoável! De tal
modo grave que até o próprio autor se está a sentir mal com a situação:
Gaita!Filha
é filha! Resumir a relação entre pais e filhos a comunicações telefónicas já é
trágico, agora ficar-se por um telefonema pelo Natal, não ter um contacto da
filha, não cabe na cabeça de ninguém, não tem perdão, digamos que deita por
terra todo o argumento porque se traduz numa história mal contada. Como se não
bastasse, estamos a falar da pobre Lúcia, a infeliz que é rica, por
afinidade,sem o saber.
Com a
consciência avivada por este desvio da narração, o nosso casal abriu a conversa
sobre o assunto, com uma seriedade e uma profundidade que nunca lhe tinha
dedicado.
- Não tarda
estará aí o Natal! E se ela não liga! Ainda nem chegámos ao verão! É muito
tempo!
- De
certeza que o Abílio do café, que conhece toda a gente, nos há de arranjar o contacto
do Paleco ou de outro que por lá ande, no Luxemburgo!
Por falar
em Abílio, contrariamente à nossa manifesta intenção, temos de voltar a Vale
dos Ovos e ao Café da Estação, porque acaba de entrar nele, em passo diligente,
uma jovem mulher visivelmente transtornada.
- O que é
que se passa Abílio? Quis fazer uma visita surpresa aos meus pais e cheguei lá
a casa e está tudo ao abandono?
Falamos
obviamente de Lúcia. No carro estacionado no parque da estação, ficaram a filha
adolescente e o marido, adiante-se já, novo marido, que o outro correu com ele,
já o devia ter feito há muito tempo, um bêbado que derretia tudo quanto
ganhavam, este sim, um italiano que a ajudou a endireitar a vida.
Ao vê-la
tão aflita, Abílio atalhou:
- Tem calma
cachopa! Eles estão bem! Quer dizer, a tua mãe está!...
- Que
aconteceu ao meu pai? Alguma tragédia?
- Tragédia
não direi, está preso!
- Está
preso onde?
- Na
prisão.
- Matou
alguém?
- Não, não
se sabe bem o que ele fez.
- E a minha
mãe?
- Como te
disse a tua mãe está bem, parece que está a viver lá para os lados da Vieira! O
Jápintas e o Pisca-pisca já lá foram, sabem onde é. Mas o melhor mesmo, é
ligares à tua mãe! Sei que ela queria ligar-te mas, como eras sempre tu a
ligar-lhe, nunca apontou o teu número. Há muito que aguarda por um telefonema
teu.
- Obrigado
Abílio, é isso mesmo que vou fazer!
E dizendo
isto, Lúcia saiu no passo em que entrou, dirigiu-se ao automóvel e ao condutor:
- Arranca,
eu indico-te o caminho, vamos para a praia.
- O quê?!
- Já te
explico, agora tenho de fazer uma chamada!
Quando
Francisca reconheceu a voz ao telefone, estremeceu de contentamento e, numa
expressão contente, fez um aparte para o Jacinto:
- É a
Lúcia!...
À medida
que a conversa ganhou rumo, Jacinto foi observando, pelo zizaguear das caras
que a companheira ia fazendo, que havia surpresas e novidades. Estava em
Portugal? Vinha a caminho? Praia, Vale dos Ovos, Abílio, prisão. Novo
marido?!...
Na outra
ponta da comunicação telefónica, também o novo marido tinha as orelhas
erguidas, mantendo calma a condução e espreitando, de quando em vez pelo
retrovisor, para sondar a atenção da enteada. Não estava em casa? Então iam
para onde? Não estava preso? Uma longa história, segredo, calma, praia, hotel.
Está tudo bem?!...
Francisca não podia esconder à filha que o pai
nunca estivera preso. Também não poderia, pelo menos para já, revelar-lhe onde
moravam. Era obrigatório que se encontrasse com ela o mais rápido possível, mas
não tão rápido que não tivessem tempo para preparar explicações sobre os acontecimentos
dos últimos meses. Isto é, Francisca foi desenrascando a situação como pôde. Dizer
à Lúcia para se instalar com a família no hotel da Vieira, que não se
preocupasse com as despesas, era, ao fim e ao cabo, uma forma de iniciar a
grande revelação que teria de acontecer. Obviamente que a filha ficou muito
confusa com o discurso da mãe – será que ela está bem? Pensou por várias vezes
– e muito ansiosa pelo
reencontro da família. Os emigrantes foram dormir ao hotel da Vieira e aguardariam pelo dia seguinte para se reunirem com o casal.
1 comentário:
Neste episódio a coisa animou um pouco! Até me fez recordar um livro do Daniel Silva!
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